
Este foi um texto que escrevi após a odiável experiência de ver o final de Game of Thrones, por isso mantive abaixo a abertura original. Aprecie.
E após quase sufocar no buraco sujo e escuro que foi a última temporada de Game of Thrones consegui recuperar o fôlego e escrever umas pataquadas. Mas sério mesmo hein, que finalzinho apressado o de GoT, não foi? Os roteiristas das duas últimas temporadas estavam com mais pressa para terminar tudo do que meu tio Apolinário para chegar em casa quando foi acometido por um furioso desconforto intestinal durante um show do Biquini Cavadão no Réveillon de 93. Spoiler: ele não achou um banheiro a tempo. Bom, pelo menos as duas histórias terminaram em merda.
Mas chega de falar de série de fantasia com zumbi, dragão e gente brava, o negócio aqui é sério. Agora é hora de falar de um casal que andou tanto que praticamente cruzou a muralha e foi parar num lugar gelado que mais parecia a terra dos selvagens. Juro que agora acabaram as referências à cultura pop.
No último relato descrevi nosso trekking até Namche Bazar, a fascinante vila/cidade no topo das montanhas. Foi um período gostoso da nossa caminhada, pois ficamos duas noites no mesmo lugar, algo raro quando seu objetivo é andar todo dia. Nossa estadia “longa” se deu pela necessidade de fazermos aclimatação à altitude, ou em outros termos, tentar acostumar nosso corpo o máximo possível às grandes alturas. Um dia não é o ideal, mas também não dá para ficar a vida toda lá, então é melhor do que nada.
No nosso dia de aclimatação fizemos um trekking rápido até um ponto de observação perto da vila. Subimos de 3.200 metros até 3.880 e depois descemos de novo. Parece pouco, mas vai você pegar uma subidinha bem da inclinada a mais de 3.000 metros do nível do mar. O pulmão fica bem debilitado e tudo é complicado. Me senti uma daquelas tias fumantes dos Simpsons. Claro, depois que você encontra seu ritmo de caminhada fica tudo mais fácil, mas até isso acontecer o ar “some” o tempo todo.
O dia estava bonito e o céu azul e bem limpo, por isso conseguimos ver pela primeira vez o Everest no horizonte. Foi bem emocionante perceber que a partir daquele momento já poderia dizer “vi o Everest quase de perto”. A visão do mirante era incrível, dava para acompanhar os caminhantes seguindo a trilha uns 500 metros abaixo, fazendo zigue-zague nas encostas do vale com algumas grandes montanhas ao fundo, como Ama Dablam, Lhotse e o próprio Everest. Aliás dava pra ver só uma pontinha meio sem graça da maior montanha do mundo, que é tímida e bem inferior esteticamente comparada às outras companheiras, mas é o topo de tudo e com certeza tem uma mística inegável. Everest é aquela famosa pessoa “feia” com charme.

E foi esse nosso dia de aclimatação em Namche.
Após isso seguimos viagem, agora éramos nós percorrendo a sinuosa trilha entre os morros e que acompanha o vale que vimos lá do mirante. Esse foi um dia puxado, pois andamos bastante e logo após o almoço enfrentamos uma subida de duas horas com vento frio e um começo de chuva. Foi um dos piores dias da trilha para mim, pois não me agasalhei bem então toda vez que eu parava para descansar o vento gelado parecia cortar até meu osso em pequenos pedaços, poucas vezes um sofá e um cobertor me pareceram tão sedutores. Culpa, principalmente, da minha irritante mania de suar em demasia. Pense em algo que atrapalha a vida, pois não posso me mover para pegar algo como o controle remoto que já começo a transpirar. Comer algo no calor? Transpiro também. Andar até o carro após fazer compras no mercado? Com certeza estarei suando. Assistir um vídeo de um filhote de cachorro sendo resgatado de um rio com corredeiras bravas? Pode ter certeza que eu transpirei (de nervoso). Essa minha maravilhosa característica é principalmente ruim no frio, pois qualquer roupa pesada me faz transpirar, caminhar com roupa pesada então só piora tudo. E aí eu fico molhado, as roupas ficam molhadas e qualquer brisa fria é intensificada em 1000%. É chato e foi especialmente chato nesse dia.

Depois de vencer esse desconforto imenso chegamos em Tengboche, uma vila ao topo da nossa subida de duas horas a 3.800 metros de altura, onde fica o mais importante monastério da região. Belo lugar para se construir um monastério, no alto de uma montanha e com outros picos ferozes e brancos de neve ao redor. Aliás o cenário todo era incrível. Com certeza é mais fácil encontrar algum tipo de iluminação ali do que em um apartamento apertado em São Paulo. Fica a dica para os leitores que procuram epifania espiritual. Enfim, nem dormimos em Tengboche pois a vila estava cheia, por isso seguimos viagem até Deboche, alguns quilômetros à frente.

De Deboche fomos até Dingboche no dia seguinte, seguindo um bonito e pedregoso caminho em que finalmente superamos a marca de 4.000 metros. Aliás Dingboche fica a 4.410 metros de altura. Ali muita gente começa a sentir bastante os possíveis efeitos da altitude: dor de cabeça, enjoo, dificuldade de respirar, possíveis delírios e vontade de assistir Caldeirão do Huck. Inclusive nesse trecho a mudança de vegetação e do cenário em geral é bem nítida, tudo fica rochoso, cinza, marrom e branco. As poucas plantas que ainda insistem em aparecer são rasteiras e parecem sofrer. Também foi nesse trecho do percurso em que presenciamos nossa primeira nevasca. Foi um momento muito especial, ainda mais porque não somos íntimos com neve (graças a Deus), mas mal sabíamos que daqui alguns dias estaríamos amaldiçoando essa porcaria branca.

Dingboche foi mais uma vila em que fizemos aclimatação e melhor ainda, foi mais um lugar interessante e bonito que encontramos pelo caminho. Pequena, simples (não existe nada no trajeto todo como Namche), e praticamente guardada pelo Ama Dablam, uma das montanhas mais bonitas dos Himalaias. Lá tem um café bem do gostoso e lotado de turistas, lugar que aproveitamos com nossas amizades da trilha (falarei delas mais abaixo) e onde encontramos outros brasileiros. O mirante em que fomos no nosso dia de “descanso” tinha uma vista surreal em duas direções: uma para o vale que segue em direção ao Island Peak, um lugar cinza e branco tomado por montanhas de aparência implacável e outra para o caminho que os trekkers seguem para o acampamento base, guardado por picos como o Cholatse e Taboche. Foi ali em cima, observando esses horizontes tão distantes da minha realidade que senti pela primeira vez que estava entrando em um mundo alienígena.

Foi também onde, em meio a um momento de extrema emoção, avistei uma turista que se escondeu atrás de algumas pedras para fazer xixi. Ela se escondeu do grupo dela, mas esqueceu de que outras pessoas estavam subindo a trilha.
Após a aclimatação, já no dia seguinte, seguimos pelo percurso que eu chamo de “começo do vale do Khumbu”, mas sei que esse termo não é correto tecnicamente, já que o vale do Khumbu é uma região muito maior do que essa, mas o blog é meu e sinceramente eu não tenho um nome melhor para essa região que quero descrever.

O caminho começou fácil, fomos por cima de um morro cinza amarronzado acompanhando o que parecia um antigo leito de rio ou o efeito de derretimento de antigos glaciares. Abaixo de nós víamos pessoas caminhando nesse “leito”, na direção contrária. Eram trekkers voltando de suas empreitadas na região e indo para Periche, uma vila que fica ao pé do morro em que estávamos andando. Foi um dia que começou tranquilo mas logo se mostrou difícil, como a vida nos ensina, as coisas sempre podem piorar. Após o almoço (sempre algo “ruim” acontecia depois da nossa refeição) enfrentamos mais uma subida homérica, de novo de umas 2 ou 3 horas. Ao chegar ao topo nos deparamos com um solene e rústico memorial para honrar os mortos nas montanhas. A vista de lá também era incrível, uma visão panorâmica de quase tudo que tínhamos andado até o momento. Enquanto estávamos lá o tempo começou a dar uma virada, com ventos fortes e um princípio de chuva. Bem apropriado para o visual belo, mas opressivo, do memorial.

Seguimos o resto final da andada diária acompanhando o glaciar do Khumbu, que parece um imenso rio gelado cortando a rocha negra. Passamos pelo nada convidativo basecamp do Lobuche Peak (a montanha estava encoberta por nuvens) e finalmente chegamos em Lobuche, onde passamos um breve nervoso por não termos lugar para dormir (a trilha é realmente cheia de turistas nessa época do ano e as vilas ficam cada vez menores). Com ajuda dos nossos amigos brasileiros arranjamos um quarto que mais parecia um cativeiro, mas que pelo menos era um teto nas nossas cabeças. Lobuche é cinza, fria (lá o frio começa a ficar insuportável, afinal são 4.900 metros acima do nível do mar) e eu não consigo racionalizar a razão, mas odiei aquele lugar. A vila tem um clima denso, claustrofóbico, parece que nos faz lembrar dos riscos e obstáculos desse tipo de empreitada. Mas essa foi minha impressão, obviamente. Caso queira tirar isso a limpo pode pegar um avião para Lukla, andar por cerca de 7 dias e se hospedar num dos raros lodges do lugar.

Lobuche é a penúltima vila antes de chegar ao Base Camp, mas para que a leitura desse post não dure mais que nosso tempo de caminhada vou encerrar ele por aqui. No próximo texto contarei sobre como quase perdi a mão e explodi meus pulmões a 5.500 metros de altura.
Beijos Quentes