
Olá desbravadores de palavras alheias, bem vindos a mais um capítulo do seu nonsense favorito (espero).
O resto dos nosso dias no Nepal foram de pura preguiça e recuperação física. Comemos muito, encontramos amigos antigos e fizemos amigos novos. Até ao cinema fomos. Não ficamos apenas em Katmandu, fomos também para Pokhara, uma cidade muito gostosa que rodeia um grande lago. Lá descobri que é possível passar o dia inteiro comendo no mesmo local e não se sentir mal por isso (sempre com a companhia de Daniel e Babi). O ápice de nossa visita à Pokhara foi numa noite em que recebemos o convite especial para beber com alguns locais, amigos de amigos. Nos embriagamos com um aguardente que mais lembrava água sanitária, enchemos a barriga com uns petiscos de qualidade duvidosa e ainda fomos sacaneados no fim da noite pelos nossos supostos companheiros nepaleses. Mesmo assim é inegável que existe algo de memorável em beber com pessoas de moral questionável em um beco escuro e misterioso. Foi uma noite interessante.
Após a estadia da preguiça em Pokhara seguimos viagem, ainda no Nepal, pois era hora de nos movimentarmos de novo, quebrar a aura de torpor e gula que tinha tomado conta de nós, e, para a tristeza dos restaurantes da região, saímos de lá em direção à Lumbini.

Foi mais uma daquelas viagens de poucos quilômetros e muitas horas. Mais um ônibus sacolejante e quente no Nepal, daqueles que sugam as energias de qualquer viajante. Depois de um tempo considerável, uma paisagem linda e uns bons litros de suor derramados chegamos ao nosso destino.
Lumbini fica bem ao sul do Nepal, já em terreno plano, seco, quente e fora da influência vertical dos Himalaias. Sim, existe uma parte do Nepal tomada por selva e clima quase tropical, não são só montanhas geladas que formam o país. Lumbini também fica perto de um dos pontos mais populares de passagem terrestre para a Índia e não estávamos lá por coincidência, afinal depois de visitar a cidade o plano era cruzar para o país onde as vacas são sagradas.
Paramos em Lumbini porque lá é o local de nascimento de Siddhartha Gautama, o Buda. Achamos que pela história envolvida seria um local interessante de conhecer, mas vou dizer, Buda poderia ter nascido em Cesário Lange que seria melhor viu. Baita experiência infernal que passamos na cidade. Claro, existe um complexo budista interessante na cidade em que é possível visitar templos budistas de diversos países do mundo e todos são muito lindos. Nesse mesmo complexo fica a casa (hoje um museu) onde Buda nasceu. Intrigante e importante. Mas é “só” isso. Lumbini não oferece muito mais que essa atração que pode ser visitada em algumas horas, só uma horda de motoristas de tuktuk que ficam com os olhos brilhando ao avistar algum turista. Oras, mas até aí a cidade não ter grandes atrações não é problema nenhum, afinal fomos ver algo específico e procurar um teto antes da nossa troca de países. O problema é que estava calor demais em Lumbini. Um calor seco e infernal que nunca senti antes. Pior até que a baforada úmida de lugares como Bangkok e Manaus. Mas não era só isso, antes fosse. Ficamos em um quarto simples em um hotel simples (do jeito que a gente gosta) que foi planejado especificamente para ser quente. Acho que durante a construção o empreiteiro do lugar pensou “qual seria o equivalente imobiliário a um forno gigante?” E aí foi e criou nosso quarto. Ele ficava na esquina do prédio que tinha formato em L, recebia sol o dia todo e tinha uma ventilação pífia. Para melhorar tempestades castigaram a região quando estávamos lá, por isso a luz vacilou mais do que já vacila normalmente no Nepal, ou seja, nosso ventilador, nosso único amigo, apenas tinha pequenos soluços de vida. Mas calma, você acha que acabou? Claro que não, eu não brinco em serviço na hora de reclamar de alguma coisa. Pense em todo cenário que já descrevi até agora: calor extremo, atmosfera sufocante e desconforto. Sabe o que pode melhorar tudo? Mosquitos. Sim, além de tudo o nosso quartinho dos infernos ainda era um portal para uma dimensão habitada apenas por mosquitos. Vocês podem estar pensando que estamos frescos, que o lugar deveria ser tranquilo e nós que não aguentamos o tranco, mas digo o seguinte: já dormimos em diversos “buracos” nessa viagem, já cansei de descrever quartos como “cativeiro” e mesmo assim esse foi pior, sendo que ele era até bonitinho (aparência não é tudo). Foram duas noites complicadas e sem descanso.

O complexo de templos e o museu, como eu disse, são interessantes e apesar de não ser um lugar grande, também não é possível fazer tudo a pé. Lembra que falei que estava um calor infernal? Sabe como exploramos tudo? De bicicleta. Isso mesmo. As vezes eu e a Marina temos umas ideias tão boas quanto quem achou que Fanta Uva era algo digno de existir. Apesar de quase termos derretido sob sol do meio dia até foi um passeio bacana. Na casa do Buda está demarcado o ponto exato onde ele nasceu, o que achei interessante, pois uma coisa é saber o local de nascimento (como a cidade), outra é o ponto exato de onde o jovem saiu do ventre. E pior que um monte de gente faz preces e oferendas ali, mas vai que o rapaz que fez a demarcação errou por alguns metros e todo mundo está adorando o local onde, sei lá, dormia o cachorro do Buda.

Brincadeiras a parte, foi impactante conhecer um lugar com tamanho peso histórico e importância espiritual (para esse lado do mundo principalmente). Aliás, achei a mistura de hinduísmo com budismo do Nepal incrível. Alguns nativos nos disseram que tem como religião, como guia espiritual, o hinduísmo, mas que seguem o budismo como modelo de pensamento. “Good thinking” foram as palavras deles, achei interessante.
Profundo, impactante, importante… Posso usar o termo que quiser, mas a verdade é que não gostamos da maior parte do nosso tempo em Lumbini e finalmente tinha chegado a hora de ir embora. Não só ir embora da cidade, mas também do Nepal. Mal sabíamos que estávamos prestes a começar uma das maiores epopeias da viagem.
O dia começou cedo, antes das 6 da manhã. Precisávamos pegar um ônibus até um cidade vizinha e depois outros ônibus até a fronteira. A ideia era pegar o primeiro transporte disponível do dia, mas assim que arrumamos tudo uma tempestade tomou conta dos céus e tivemos que esperar. Lá pelas 8 da manhã conseguimos sair e entramos em um ônibus que tinha cara de “vou quebrar”. E ele quebrou. Esperamos por outro no meio de uma estradinha triste e enlameada. Demoramos quase duas horas para andar 20 quilômetros, mas enfim chegamos na cidade vizinha. Mais um transporte público de 15 minutos e estávamos em Sunauli, a movimentada fronteira. Eram milhares de caminhões e ônibus de um lado e do outro. Nós atravessamos a pé, passamos na sinistra imigração do Nepal e depois, quando chegamos na imigração indiana, tivemos que esperar sentados por uma hora pois o aparelho de scanner deles estava quebrado. Era um daqueles dias. Nesse meio tempo conhecemos outros viajantes e decidimos dividir um táxi com eles, afinal nossa jornada estava longe de terminar. Não era só passar para a Índia e pronto. Tínhamos que ir até Gorakhpur e de lá pegar um trem até Varanasi, nosso destino final. Mas da fronteira para Gorakhpur o ônibus leva umas 3 horas e o trem até Varanasi mais umas 6 horas. Era muito chão para andar ainda.

Para ganhar tempo invés de ir de ônibus rachamos o táxi com outros turistas, como já disse, até Gorakhpur. Chegamos de tarde, mas ainda em tempo de pegar o último trem do dia. A estação estava abarrotada, parecia um mar de pessoas estiradas, era difícil ver o chão. Finalmente estávamos na Índia. Compramos o bilhete de trem mais barato que já vi na vida e logo depois descobri porque ele era tão barato assim. Quer dizer, logo depois nada, pois caiu um aguaceiro sem precedentes e o trem atrasou mais de uma hora. O que foi juntando de gente na nossa plataforma semi alagada não foi brincadeira, comecei a ficar nervoso, pois não sou o maior fã de multidões e fluídos corporais alheios. Quando o bendito trem resolveu dar as caras no horizonte a multidão pulsava. Estavam todos cientes do que iria acontecer e sabiam o que era necessário fazer, menos eu e a Marina, duas baratas tontas no meio de um formigueiro. O trem foi se aproximando e mesmo sem parar as pessoas já corriam para subir nos vagões ainda em movimento. Quase fomos atropelados umas três vezes. Corremos junto com a boiada, mas em ritmo muito mais lento, por isso em todo vagão em que entramos todo espaço físico possível já estava tomado. Éramos como dois touros numa loja de porcelana, com as mochilas gigantes nas costas batendo em todo mundo. Depois de alguns infernais minutos de luta em que eu xinguei muito o universo e transpirei em quantidades olímpicas achamos um vagão menos lotado, em que dava pra guardar as malas e ficar em pé pelo menos. Logo dois indianos muito simpáticos abriram espaço pra gente sentar, então não foi tão ruim. Foram seis horas cansativas, ora com o trem cheio, ora com o trem vazio, pois paramos em várias cidadezinhas pelo caminho. Um bom aquecimento para a claustrofobia indiana.

Chegamos em Varanasi quase às 23 horas, dois vestígios do que um dia tinham sido seres humanos. Depois de muito negociar um tuktuk e acordar um preço que eu tenha certeza que foi caro demais ele nos deixou em frente a uma rua fechada e disse que dali em diante não poderia seguir, teríamos que andar o último quilômetro restante do trajeto.
Foi aí que realmente caiu a ficha que de onde estávamos. Para os que ainda não foram apresentados a esse maravilhoso lugar, Varanasi é uma das cidades mais antigas da Índia (quiçá a mais antiga) e um local sagrado para os Hindus, um lugar especial para morrer. A relação da cidade com o Ganges é íntima, afinal é o rio mais importante para o hinduísmo e ela fica situada na sua margem oeste. E ainda, Varanasi é intensa, como que um microcosmo intensificado de vários características da Índia – muita gente, muita cor, muita sujeira, muita espiritualidade, muita vaca na rua e muita coisa diferente. Diversos viajantes acham que é o lugar mais maluco de um país já maluco para nós ocidentais, e eu não posso negar.

Quando o tuktuk nos largou no meio da rua ficamos meios desnorteados, a cidade ainda pulsava apesar de ser quase meia noite. Mas era uma pulsação decadente, daquele estilo fim de noite. Pessoas pareciam voltar para suas casas e os que ainda perambulavam de um lado pro outro pareciam procurar alguma coisa. Passamos por fogueiras no meio da rua, desviamos de lixo e restos animais e quase fomos atropelados por uma vaca desgovernada (era só o que me faltava). O clima era estranho, mas em nenhum momento me senti inseguro. Seguimos o mapa e chegamos até os ghats (escadarias) que dão para o rio. Fui à cometido pelo clima de grandeza e antiguidade do lugar, mas não deu para absorver quase nada, pois já era quase meia noite e a prioridade era conseguir se limpar e ficar um pouco na horizontal. Andamos pelo rio e nada. Não achava a guest house. Resolvi subir por um beco escuro e cai em um labirinto de vielas estreitas, o que eu acho que deva ser a cidade antiga que beira o rio. Perambulei por uns 20 minutos a esmo e no fim só achei nosso hotelzinho porque Vishnu quis. Resgatei a Marina, que tinha ficado me esperando no Ganges e ufa, finalmente chegamos. Pensa num dia longo. Agora pensa num dia longo em que várias coisas dão errado. O nosso foi mais ou menos assim, mas o importante é que atingimos nosso objetivo.
Chegar na Índia não foi fácil, mas rendeu uma boa história (acho).
Mas chega, que fiquei cansado só de lembrar desse dia. Depois conto mais sobre Varanasi.
Beijos Quentes