Esse relato cobre os eventos de 2/9/2018 a 7/9/2018
Olá. Como vai? Bem? Será? Será que você não está procurando esse entretenimento rápido para tapar algum buraco emocional nessa alma perturbada? Não? Ok. Desculpe o pessimismo, é que chega a hora de falar da China e minhas emoções já ficam a flor da pele. Bom, vamos lá.
A China foi uma montanha russa de emoções. Um dos maiores mistérios dessa terra milenar é como ela consegue encantar na mesma proporção que irrita. No fim eu, Rafael, gostei. Gostei bastante. Gostei porque aprendi muita coisa, inclusive “como viajar melhor”. Mas que em certos momentos esse foi um aprendizado árduo, a isso foi. No fim dos capítulos da China farei um resumão sobre o tópico.
Já começamos nossa passagem pelo país bem cansados. Quer dizer, chegamos esgotados em Pequim, afinal estávamos vindo de uma maratona de perrengues (perrengues incríveis, mas perrengues) ali na Mongólia. Não deu nem tempo de descansar, foi só voltar do tour, dormir algumas horas e pegar um avião de madrugada. A nossa energia já estava bem baixa.
Mas claro que eu ignorei todos os avisos do meu corpo e da Marina, e dei uma forçada de barra para conhecer ao máximo a cidade. Ainda era começo de viagem e eu estava no meu modo “turismo férias”. Sim, eu posso ser aquela pessoa chata que quer fazer tudo que o local tem pra oferecer, principalmente se for um lugar cheio de história, como Pequim. Na verdade até sofri com isso, pois mesmo batendo muita perna por lá ainda sentia que estava deixando de fazer bastante coisa. Uma bobagem de pensar que não estava “consumindo a cidade de forma correta”. Ainda bem que hoje sou uma pessoa quase curada dessa síndrome e me contento em ficar jogado em algum canto, assistindo Netflix, com o mínimo de roupa possível e relaxando. Sim, esse tipo de viagem que estamos fazendo precisa de momentos assim. Não dá pra fazer tudo e, principalmente, não dá pra fazer tudo rápido. Não foi em Pequim que eu aprendi isso, mas foi na China (relatos que ainda estão por vir).

Enfim, estávamos cansados, eu ignorei isso e comecei a me irritar e irritar a Marina com essa mania de “conhecer tudo”.
Mas em minha defesa recebi um choque de energia ao chegar no centro da cidade. Poxa, era nossa primeira vez no leste da Ásia, naquela Ásia que conheci pelos milhares de filmes de kung-fu que assistia/assisto. Sim, eu sei que o continente é muito mais que China e Japão e artes marciais e samurais, mas oras, essa era minha maior referência sobre o lugar e algo que eu estava ansioso para ver. Só de observar a rua lotada de letreiros em ideogramas, a mudança drástica de arquitetura e a confusão local me senti animado. Claro, já tínhamos chegado na Ásia faz tempo, mas o leste da Rússia e Mongólia não representaram quebras de realidade tão grandes assim. Quer dizer, a Mongólia obviamente sim, mas de uma forma diferente, lá foi muito mais sobre o povo e o modo de vida, ali em Pequim eu estava me sentindo em um set de cinema. E essa é minha defesa para parte do comportamento maníaco apresentado nesse período da viagem.
Ficamos em uma região turística, próximos do mausoléu do Mao, da praça da paz celestial e de mais um bocado de prédios históricos e bacanas que parecem saídos de algum cenário do Mortal Kombat. O nosso próprio hotel tinha uma aura toda “China Imperial”, com arquitetura tradicional e um hall cheio de lanternas. E não era só decoração não, ele era um hotelzinho frequentado por locais mesmo. Tão local que era cheio de senhoras chinesas jogando baralho e sem ninguém que falasse inglês. Aliás, que lugar difícil de achar alguém que fale inglês. Comunicação foi um problema crônico na China, não só em Pequim. Nem o tradutor resolvia a parada, aliás, só piorava, eles nunca entendiam o que queríamos dizer. Eu acho que devia acontecer tipo aquelas cenas de filme ruim de comédia, em que um personagem tenta falar algo em outra língua e acaba falando uma frase totalmente absurda, mas ainda construída de forma coerente. Por exemplo, perguntávamos (usando o app) “onde é o banheiro?” e os chineses deviam ler algo como “o senhor quer se juntar a nós para invocar das profundezas Azatoh, o maligno?”. Devia ser uma coisa dessas mesmo, pois normalmente depois dessa tentativa frustrada de comunicação os chineses fugiam de nós.

Bom, voltando ao nosso hotel e suas redondezas, o bairro ali foi o que mais gostei da cidade. Cheio de vielas misteriosas (hutongs), restaurantes secretos e um pouco de vida local escondida entre os lugares mais turísticos. Também tinha um McDonalds perto, outro ponto vital, pois no fim a Má descobriu que não gosta muito da comida chinesa de verdade (e eu não nego um McDonalds). Quem diria que o China in Box não é uma reprodução fiel da culinária dos filhos de Confúcio.
Fora perambular ali por perto de onde ficamos, também fizemos o pacote turismo básico. Visitamos a Cidade Proibida, fizemos uma viagem até a Muralha, andamos por um mega shopping de bugigangas, conhecemos alguns parques e palácios/templos antigos e comemos o famoso pato de Pequim. Que é bem gostoso, mas não é nenhum filé à parmegiana.
Aliás o pato quase causou um incidente internacional grave.
Já aviso, agora vem aí mais uma história escatológica. Desculpe, não é minha intenção sempre retomar esse tema, mas preciso ser fiel aos fatos da viagem. Juro que esse é o penúltimo episódio em que trato desse assunto com tanto destaque.
Voltando ao pato. Tinha comido ele na noite anterior e, além de comer de forma demasiada, meu sistema digestivo ainda estava se acostumando com as particularidades de começo de viagem. No dia seguinte fomos conhecer a Cidade Proibida, que é incrível. Lugar maravilhoso, difícil imaginar que partes do complexo ali são mais “antigas” que o Brasil. Detalhes e imponência em uma mistura foda. Ali só faltou alguém me chamar para a briga para termos a parte 3 de “O Tigre e o Dragão”.

Enfim, o lugar é lindo, mas o dia estava quente demais, baita sol pairando sobre a cidade e nossas cabeças. Isso já começou a nos desgatar, fora que estava muito cheio, a muvuca tornou o calor pior e acabou ainda mais com nossos ânimos. Mas gostaria eu que esse tivesse sido o último problema do dia, preferia mil vezes uma leve insolação do que o que estava por vir. Sim, ela veio sorrateira e quase me dominou ali no Hall da Harmonia Suprema. Era ela mesmo, a famigerada dor de barriga. Começou devagar e eu achei que daria para controlar, mas vocês sabem como esse tipo de coisa se desenrola e do nada eu estava tendo calafrios em um calor de mais de 30 graus. Tentei ir em um banheiro, mas ele estava lotado e a galera não saía de lá por nada. Desisti. A fúria intestinal deu uma acalmada e pensei que conseguiria ir embora até um ambiente seguro, mas eis que aí o destino me pregou uma peça. Alguma delegação internacional também estava visitando o local e as saídas ficaram fechadas por um tempo para que as pessoas importantes pudessem se retirar em segurança enquanto o cidadão comum quase morria de desarranjo das tripas lá dentro.
Por um momento achei que iria acontecer, achei que eu seria “O” cara que iria fazer aquilo ali na Cidade Proibida. Cheguei até a imaginar os futuros guias explanando “aqui é o Palácio da Pureza Celestial onde o imperador Jiajing escutava seus poetas e logo ao lado, ali no canto, é onde Rafael, um brasileiro adulto de 28 anos não conseguiu controlar seu sistema digestivo”.

Ufa. Ainda bem que não aconteceu. Achei um banheiro mais vazio e, graças ao treinamento na Mongólia, encarei o desafio com maestria. Uma vitória em minha vida.
Do restante de nossas visitas vale destacar a Muralha, óbvio. É uma coisa espantosa, uma construção que segue a encosta dos morros e colinas ali do norte em direção ao oeste, sempre beirando a Mongólia Interior. É um negócio longo, maluco e hipnotizante. Bonito demais. Sensacional como um empreendimento daquele tamanho foi feito há tanto tempo. Quer dizer, sensacional nada, pois morreu gente pra caramba construindo a coisa toda. Mas o resultado final ficou bonito, pelo menos.

Fomos em uma parte bem vazia da Muralha. Claro que tinha a turistada de sempre ali, mas bem menos do que eu esperava. Vale a pena conhecer, principalmente se você gosta de subir e descer escadas e suar muito mesmo sem estar em uma aula de zumba.

Outra coisa que fiz e gostei muito foi explorar os hutongs. Um teletransporte para outros tempos e uma ótima maneira de achar comida boa. Na nossa última noite sai explorando essas ruazinhas estreitas no escuro e sozinho, já que a Má estava cansada, e foi bem legal. Um clima diferente, cheio de neons e lanternas chinesas. Uma estética meio cyberpunk tomou conta da cidade e isso pra mim foi demais. Sem falar que desbravar algo desconhecido assim, sem mais ninguém, é muito bom. Amo viajar em casal e provavelmente não sairia nem para a feira que tinha em frente ao nosso prédio em SP se não fosse a Marina, mas a sensação de conhecer algo sozinho é incrível. Se tiver a oportunidade faça isso pelo menos uma vez na vida.


Mais um ponto interessante são as motinhos elétricas que dominam a cidade. São muitas. Não tantas quanto as scooters de Hanoi, mas ainda assim são muitas. E o legal é que a buzina é algo cultural, por isso a sinfonia de Pequim é das mais belíssimas. Lembrei muito de São Paulo. Interessante também que, como são elétricas, essas motos quase não produzem som de motor, o que é especialmente bacana quando você está andando de forma despreocupada em um hutong apertado e do nada BEEEEM, vem aquela buzina repentina de uma moto sorrateira que estava atrás de você o tempo todo. É de fazer cair dura a pessoa com o coração mais debilitado.
E por fim não tem como não falar deles, os chineses, que tornaram nossa experiência em Pequim e no resto da China muito, é… muito especial. Na nossa primeira cidade esse encontro ainda foi “superficial”, mas já tivemos um primeiro contato com as ombradas e empurrões tão comuns no transporte público, a incapacidade de entender o conceito de fila (ou a falta de paciência para essa ideia) e as constantes cusparadas e flatulências desenvergonhadas na rua.
No começo tudo isso choca, mas você acaba se acostumando e entendendo que “faz parte do jogo”. É a cultura. Não é nada pessoal você receber uma ombrada, é normal. A partir do momento que você entende e começa a distribuir suas próprias pancadas aceitas no contrato social, tudo fica bem (ao menos que você soque um idoso, aí acho que não vai pegar tão bem). Mas claro que isso tudo é um processo e até assimilarmos essas ideias as irritações vem à tona. Como eu disse, Pequim foi o começo, e ainda não estávamos nem no nosso pico de irritação e nem na nossa fase de compreensão. Aliás a China, com suas dificuldades, te irrita aos poucos. É o cartão de débito que não funciona, o povo te empurrando, o clima, a comida, o cansaço, etc.. pequenas coisas, que são, bem, pequenas, mas que para nós, no começo da viagem, eram desesperadoras e causavam muito estresse. Ainda não vou falar sobre isso, mas uma hora todas as mini irritações se juntam e formam um megazord de raiva e rancor, e aí as coisas realmente ficam complicadas.

E acho que essa foi Pequim para nós, a grandiosa, e a sua maneira caótica, porta de entrada para um país, bem, grandioso e caótico. Mas que fique claro, caótico para nós, forasteiros e iniciantes de viagem, pois a turma vivem bem por lá.
Beijos Quentes