Olá argonautas do desespero, continuamos nos balançando nessa velha nau esburacada chamada vida. E eis que mais uma tormenta se forma no horizonte, porque chegou a hora de ler mais um post deste famigerado blog.
É com esse discurso motivacional que abro o relato abaixo.
Saímos às 19 horas de Sófia e chegamos às 6 na capital da democracia. Mal pulamos da nossa lata fumegante e fomos logo prestar homenagem ao berço da sociedade ocidental – e tem jeito melhor de homenagear os valores coletivos que gritam tão alto aqui na nossa parte do mundo do que dormindo com sem-tetos em uma praça qualquer? Pois bem, foi o que fizemos.
Vou explicar melhor. Talvez um pouco de contexto seja necessário. Ninguém (com opção) sai dormindo na rua assim do nada, só talvez o meu tio Glauber, que bebia demais e inventava de guardar a chave de casa no orifício auricular, esquecia, e depois não conseguia mais abrir a porta. Enfim, não foi o que aconteceu com a gente.
A Grécia seria um país diferente para nós, afinal por lá teríamos a visita da Vera, a mãe da Má. Por isso o ritmo foi mais de férias do que de mochilão e aventura – acomodações e transportes receberam um upgrade. Em Atenas alugamos um Airbnb gostoso e com ótima localização, só que tinha um problema, só poderíamos entrar nele depois do almoço, lá pelo meio da tarde. Como alguns devem se lembrar, chegamos quase de madrugada na cidade, ou seja, tínhamos umas boas horas para matar antes de poder desfrutar de uma cama.
Imagina o rapaz que construiu isso vendo como é que tá hoje em dia
Talvez pessoas mais normais não tivessem dificuldade em encontrar atividades para fazer o tempo correr, afinal não faltam locais para visitar em Atenas, mas nós estávamos carregando a preguiça acumulada da viagem, nossas malas gigantes e ainda sob efeito de uma noite mal dormida, a famosa “noite de ônibus sacolejante”. Por isso fomos andando do ponto em que descemos até a praça mais perto do nosso futuro Airbnb, sentamos, deitamos e relaxamos. Era uma praça bonita? Não. Era um lugar limpo? Não muito. Tinha uns restos de comidas no chão que lembravam o intestino de um ser humano? Sim. Parecia mais o centro de São Paulo (não de um jeito bom)? Sim. Mas nada disso nos impediu de se aprochegar por ali, afinal a essa altura da viagem já tínhamos nos enfiado em cada lugar estranho que confraternizar com moradores de rua europeus poderia ser classificado como experiência chique. Não duvido que se houvesse tempo para uma troca de ideias histórias incríveis surgiriam do papo, mas todo mundo ali só queria descansar. E foi tudo bem tranquilo, cada um em seu canto e uma paz reinando no nosso berço de concreto.
Depois disso bastou entrar no apartamento (já liberado) e buscar a tão esperada Vera, a mãe da Marina, no aeroporto. Foi uma explosão de afeto, lágrimas e gritos quase contidos (em que eu também participei). A essa altura já estávamos há quase 1 ano fazendo bobagens pelo mundo e a minha fiel companheira estava no auge da saudade de casa e da família. Vera veio como um bálsamo para as feridas emocionais que afligiam nossa dupla. Pense em um nível de ansiedade e emoção bem acima do normal, junte isso com uma personalidade efusiva e intensa e temos a pequena bomba de energia chamada Marina. Agora pense que a mãe dela é parecida (quase igual). E agora pense (juro que é a última vez que escrevo isso) em como foi o encontro delas depois de quase 12 meses. Um espetáculo digno de “Chegadas e Partidas”. O melhor de tudo: conhecer a Grécia era um sonho da minha querida sogra, por isso ajudamos ela a realizar um antigo desejo – foi uma sensação muito boa, me senti quase como um Luciano Huck bem menos cusão e explorador da desgraça alheia.
Curtindo a vista
Após o pico de euforia causado pelo encontro inicial, fomos curtir um pouco de Atenas.
Foram 3 dias que passaram voando. Comemos muito, bebemos consideravelmente, tomamos sorvetes de tamanhos titânicos e andamos com o afinco de antigos heróis gregos. Resumindo, nos divertimos demais. A cidade, pelo menos a parte turística, é linda. Andar alguns metros e ver o antigo templo de Hefesto compartilhando o horizonte com uma barraquinha de gyros é indescritível. A cada esquina é possível tropeçar em uma ruína com mais de 2.000 anos. É muita história em um lugar. E muito turista também. Andar no mesmo solo onde Sócrates um dia verbalizou como os Sofistas eram uns cuzões é inebriante, mas compartilhar esse solo com mais meio milhão de pessoas que não tem nem interesse em saber o que aconteceu ali é, sei lá, brochante. Não que todo mundo deva gostar de história, saber o que se passou e babar ovo pra uns tiozões de roupão de quase 3.000 anos e o caramba, mas poderia rolar um pouco mais de interesse. O turismo nessas cidades parece reduzido ao exercício de álbum de figurinhas, basta colecionar o que está indicado nas páginas, mas não conhecer. Ou melhor, acho que “checklist” é uma metáfora melhor que álbum. Sei lá. No fundo é tudo um julgamento de valor meu, obviamente. Muita gente e muito calor fazem isso comigo. Enfim, a impressão que dava era que Atenas, para muitos, era só uma paradinha básica para a Ilha mais próxima. E acho que era isso mesmo né? Qual o problema? Cada um viaja do jeito que quer. Mas que eu posso criticar os outros na minha cabeça (e no meu blog), isso eu posso. Eu reclamo tanto que nem um fio de Ariadne poderia me ajudar nesse labirinto cáustico que as vezes minha mente se torna.
Vista da Acrópole
O importante é que eu andei pra cá e pra lá em Atenas, sempre castigado por Hélio e transpirando o equivalente a um mar Egeu enquanto julgava os outros. Nesse meio tempo conheci lugares espetaculares, como o Estádio Olímpico, a ágora, a acrópole e mais um bando de locais onde não encontrei nenhum dos cavaleiros do zodíaco. Enquanto visitava essa porrada de marcos históricos me perguntava, como perdemos tanto desde a antiguidade clássica? Fomos de estudos astronômicos avançados e o crème de la crème da filosofia para uns camponeses sujos de lama sendo chicoteados por uns malucos com coroas na cabeça – e eu nem estou falando da Idade Média.
Como já disse, nosso modus operandi de viagem tinha mudado na Grécia. Era para turistar intensamente e nós turistamos intensamente (mas com curiosidade). Foram dias de risadas e muitos abraços acumulados. Apesar de ter reclamado um monte logo acima ali no texto, eu gostei de Atenas. Só faltou ficar mais alucinado que um gambá e gritar umas verdades para a população da praça.
Mas o melhor da nossa epopeia grega ainda estava por vir, o desbravamento de algumas ilhas. De Atenas fomos para Creta, um paraíso mediterrâneo, mas esse é o tema do próximo post.
Olá amantes do obscuro e dançarinos da escuridão, nos encontramos mais uma vez nesse teatro das sombras para celebrar a tristeza que é viver. Estou aqui de novo com uma boia para salvar vossas almas desse oceano de marasmo, das ondas da mediocridade e do abismo da rotina. Oras, acho que é melhor ler isso do que o último e-mail do seu cliente em que ele diz, de forma muito amável, que seu trabalho precisa ser praticamente refeito em poucos horas.
Enfim, ainda estávamos por Göreme, de alma esfrangalhada curtindo a paisagem pitoresca e uns bons chás, quando nos tocamos que era necessário entrar em movimento de novo. A Turquia nos esperava. Um dos países mais antigos do mundo ansiava por ser descoberto por nós e por mais uns 500 milhões de turistas. Mas como estávamos em modo de economia energética resolvemos alugar um carro, um pequeno luxo frente aos perrengues do transporte público, que diverte e cansa na mesma medida.
Para isso fomos até Kayseri, uma cidade a 1 hora de Göreme, onde enfrentamos uma Quimera burocrática para conseguir nosso carro. Não vou detalhar nada, pois seria aqui mais um relato dos chatos obstáculos de papel e caneta que aparecem no percurso, mas vou dizer que o que deveria demorar umas 2 horas acabou demorando quase 5, gerou uma discussão acalorada entre eu, um atendente de telefone que falava pouco inglês e dois turcos do balcão da locadora que não falavam inglês nenhum. Foi a torre de babel do aluguel de carros.
Queriam nos cobrar algo que achei injusto e no fim concordamos em devolver o carro de volta em Kayseri e não em Istambul, o que dificultaria o fim da nossa viagem turca, mas falo mais sobre isso nos próximos relatos.
Depois de quase sair na mão pela primeira vez na viagem, finalmente embarcamos no nosso possante Peugeot-301. Não é brincadeira não, o carro andava quase no negativo. Foi o primeiro caso de veículo brocha que presenciei. Limpo, arrumadinho, mas fraco. Bom, faz parte, é isso que a busca pela locação mais barata normalmente entrega. O importante é que começamos a cruzar o país em um sedan de tiozão na velocidade da minha falecida tia Gertrude ao volante. E foi incrível.
A ideia era sair da Anatólia central, bem no meio do país, e seguir para a região do mar, mais precisamente o sudoeste da Turquia. Mas como estávamos longe fizemos algumas paradas interessantes pelo caminho.
Entrada feminina da Selimiye
A primeira foi em Konya, uma das cidades mais antigas do mundo, habitada desde cerca de 3.000 AC. Konya é também lar do braço do Islã chamado sufismo, do poeta Rumi e dos dervixes rodopiantes – aqueles rapazes que dançam rodando feito loucos com suas roupas largas e no fim conseguem andar normalmente como se nada tivesse acontecido (eles seriam campeões das finadas olimpíadas do Faustão). Eu não vou comentar sobre cada um desses pontos que acabei de mencionar (faça como eu e dê um Google para aprender mais), mas deu para perceber que Konya é um lugar com uma história incrível. E também um dos locais mais tradicionais da Turquia. A cidade até que é moderna (em termos de estrutura), charmosa e tem bastante jovens pelas ruas, mas lá quase não vimos mulheres sem hijab e eu era provavelmente a única pessoa (fora crianças) usando shorts. Também quase não vimos outros turistas. Mas como somos de fora não sentimos nenhum olhar de repreensão, porém pelo o que li e ouvi por aí as mulheres de lugares mais cosmopolitas, como Istambul e Izmir, não gostam tanto de se enfiar nessa Turquia mais interiorana.
Ficamos apenas duas noites na cidade, mas foi suficiente e deu para conhecer sua avenida principal que já conta com um número notável de mesquitas incríveis. Tem a colina do Alaaddin (não tem nada a ver com o desenho da Disney, infelizmente) em que fica a mesquita mais antiga da cidade, o centro histórico Mevlana e a mesquita Selimiye, um dos únicos lugares onde senti uma sensação diferente ao entrar, um tipo único de paz transcendental que durou até eu tropeçar em um degrauzinho e quase cair em cima de um jovem que estava orando. Os momentos de iluminação são raros na minha vida.
Mas os momentos mais legais em Konya foram pequenas porções do nosso dia, como quando tomamos chá da tarde em um café cheio de senhores carrancudos, mas que se mostraram felizes com nossa presença (espero) e quando fui cortar o cabelo em um típico barbeiro turco. O lugar ficava em frente ao nosso hotel e eu estava precisando de uma aparada urgente nas madeixas. O meu cabelo já estava com consciência própria e não mais respeitava minhas tentativas patéticas de penteá-lo com as mãos (não tenho e nunca tive pente), rebelde que é tenho quase certeza que ele também já estava planejando algum ato para desestabilizar a ordem mundial e dominar o planeta. Meu cabelo tem mais ambições que eu.
Resolvi então dar um fim no maldito e entrei nesse lugar simpático onde ninguém falava inglês, como era de costume em Konya. O barbeiro logo entendeu o que eu queria, a Marina mostrou uma foto no celular de como eu esperava o resultado, o barbeiro riu porque deve ter achado que eu jamais ficaria tão bonito quanto o modelo da tela, eu fiquei constrangido e assim, nesse ritmo gostoso, começou o processo do corte. Durante os primeiros minutos as etapas foram as esperadas na ação de modelagem capilar. Mas depois de terminada a parte com tesouras e navalhas algo estranho começou a acontecer. Primeiro o rapaz e seu ajudante praticamente colocaram fogo nas minhas orelhas para queimar pelos e o que estivesse no caminho, depois ele pegou um creme esverdeado e espalhou pelo meu rosto, tal qual uma perua em um day spa qualquer – só faltou colocar pepinos nos meus olhos. Depois eles limparam a famigerada gosma verde e colocaram toalhas em mim junto com um vaporizador maluco e usaram mais um creme esfoliante – foram camadas e mais camadas de reboco nessa reforma inacabada que é minha cara. No fim tive o prazer de ter uma dose de pomada modeladora aplicada nos fios e ganhei uma massagem que beirou um erotismo que eu não estava preparado para experienciar. Não foi apenas um corte de cabelo, foi uma tempestade de sensações conflitantes em que várias vezes eu quis ir embora mas ao mesmo tempo nunca tinha sido tão bem tratado. Barbeiros turcos são mais carinhosos e acolhedores que colo de mãe.
Dando um tapa no visual
No fim ganhei um belo “dia de princeso” e ainda paguei 4 dólares pelo trâmite todo. Olha, se barbeiros atenciosos estão entre as tradições de Konya eu sou totalmente a favor do conservadorismo, afinal no Brasil por esse valor eu ganharia apenas um corte “tigelinha” e um pedaço a menos da minha orelha.
Quem diria que o momento mais espiritual em uma cidade sagrada seria junto a um turco parrudo com uma navalha perto do meu pescoço.
De visual novo e alma lavada passamos por uma antiga e charmosa vila grega que fica bem perto da cidade e onde comemos, como sempre, mais do que devíamos. O lugar era pitoresco, quase parado no tempo, com aquele charme que só “vilazinhas” conseguem ter. Valeu a enchida no bucho.
Apesar das reclamações quanto ao possante que o universo nos entregou, Konya é um lugar que provavelmente não estaria nos nossos planos caso viajássemos de outra forma, por isso a liberdade automotiva nos rendeu frutos interessantes. Faltou só dar mais cavalos de pau pelas estradas.
Não tinha muita foto de lá não
Depois da minha peregrinação visual deixamos Konya e fomos em direção a antigas cidades gregas/bizantinas, visitamos ruínas que existem a mais tempo que aquele chocolate na cristaleira da sua avó e quase derretemos sob um sol impiedoso.
Os últimos dias de trilha, a mais de 5.000 metros.
Olá companheiros dos fins dos tempos. Como estamos todo aguardando o inevitável colapso da sociedade, sugiro que você distraia-se com a leitura deste post. A essa altura você já viu todas séries possíveis mesmo, não custa nada dar uma chance para meu texto.
Acho que o desanimo bateu em Lobuche porque estávamos pressentindo o que nos esperava, pois após uma noite fria no nosso quarto que mais parecia um cativeiro, que só conseguimos porque nossos amigos brasileiros (Daniel, Baia e Samir) cederam para nós, acordamos agraciados por uma bela tempestade de neve, daquelas que não deixam nem o sol atravessar as nuvens. Caso não tivéssemos conseguido um lugar para dormir estaríamos mais gelado que o Leo DiCaprio no fim de Titanic. Graças a deus pelo quarto/cativeiro.
A temperatura caiu muito durante a noite, a neve tomou conta do cenário e o dia que se iniciava estava tomado por uma espécie de névoa desoladora. Começamos a trilha sem conseguir enxergar mais do que poucos palmos a nossa frente e o gelo que agora estava presente no solo causava os mais bizarros acidentes. Ver gente parando no meio da trilha para colocar grampos na bota não é uma visão muito acalentadora quando sua melhor e única ferramenta de caminhada é seu corpo meio surrado e acima do peso. De novo o clima “opressor” de Lobuche tomou conta de nossos corações, mas eis que após uma hora de caminhada a luz venceu, o dia se abriu e o sol tomou conta do céu. Nunca fui desses hippies que dão bom dia pro sol, inclusive julgo a turma que faz isso (se você faz, desculpe, já te julguei), mas nesse dia eu quis abraçar o astro rei com todas minhas forças, mesmo que isso fosse causar uma ou outra queimadura em meu corpinho.
O caminho com a névoa – aí já estava até que bom
O cenário que até então era depressivo transformou-se em uma das paisagens mais lindas que já vi. Estávamos em uma parte plana do vale do Khumbu (situação rara), indo em direção a uma pequena cadeia de colinas rochosas que precisaríamos cruzar para chegar em Gorak Shep, a última vila antes do nosso objetivo final, o campo base do Everest. A nossa frente as já mencionadas colinas, ao lado direito o glaciar do Khumbu e montanhas como Lola, a esquerda mais montanhas que não sei o nome. Tudo branco, imaculado. Parte de uma outra dimensão. Não gosto de neve, mas deve admitir que o inferno branco deixou a paisagem muito mais linda – foi um passeio em um planeta desconhecido. Era complicado decidir entre andar ou apreciar o visual.
Foi um dos momentos em que tive certeza que aquela loucura e todas outras loucuras da viagem eram parte de decisão muito acertada em nossas vidas. Um daqueles raros momentos de epifania em que você se sente em paz com um caminho traçado e ou uma decisão tomada. Dessa vez a natureza empurrou essa epifania pela minha goela abaixo. Qualquer perrengue valeria a pena para viver aquilo e nem no Everest nós tínhamos chegado ainda.
Rafael e Marina, exploradores interdimensionais presos em uma realidade feita de sal ou algo assim. Esse era o tipo de viagem que estava passando pela minha cabeça durante a ebriedade causada pelo momento de alegria, mas logo o frio, a fome e a sede fizeram questão de destruir o momento. Nada como a vida real martelando as durezas da realidade em nossos sonhos. Continuamos andando, era o que dava pra fazer.
Marina olhando pelo vale que tínhamos atravessado
Atravessamos os amontoados de rocha que se colocaram de forma muito inconveniente no meio de nossa amada planície de neve e logo estávamos em Gorak Shep (5.164 metros) um triste amontoado de casas e resistência humana em um lugar horrível para se existir. Ainda desgosto mais de Lobuche, mas Gorak Shep foi um péssimo local para dormir. Lá é frio. É mais que frio, é muito frio. É gelado, glacial, muito além do sub-zero. Isso em uma época que não deveria ser tão fria, mas tivemos a “sorte” de pegar uma primavera atípica na região. Para melhorar ficamos em um lodge em que o quarto oferecia exatamente nenhuma proteção contra o frio. Para vocês terem ideia o telhado era vazado e praticamente nevava em nossas camas. A sala comum do lugar também não era tão quente quanto às outras que passamos, e todo mundo lá só tinha cara de triste e sofredor. Resumindo, não sei se deu para perceber mas não gostamos muito de dormir em Gorak Shep.
Desconhecido que entrou na minha foto.
Porém estou me adiantando na história, pois quando chegamos lá ainda estávamos animados, era dia, e só faltavam algumas horas para chegarmos ao basecamp. O itinerário era ir de uma vila para outra e até o campo base e voltar no mesmo dia.
Almoçamos no lodge, esperamos nossos amigos brasileiros, chegarem a vila e saímos todos juntos em direção ao tão esperado destino. Aliás eu só mencionei eles de forma superficial até agora, mas conhecemos esse grupo de brasileiros no nosso primeiro dia de trilha e apesar de não andarmos juntos, nos encontramos bastante pelo percurso. Pessoal bem do gente boa.
O começo da caminhada até o acampamento base.
Já era de tarde e o dia tinha perdido seu brilho, e como acontecia na maioria das tardes naquela região, ficou cinza e nublado. O caminho até o acampamento base foi tranquilo e cheio de risadas. Para chegar lá de Gorak Shep foi necessário atravessar uma série de morros irregulares cheios de mini precipícios, com a companhia do glaciar ao nosso lado direito. Mais ou menos o que tínhamos enfrentado entre Lobuche e Gorak Shep.
E quando as tendas amarelas das expedições que sobem o Everest já estavam bem próximas e visíveis começou uma bela de uma nevasca. Pisamos no acampamento base sendo castigados por um odioso amontoado de neve. Tudo ficou mais frio, mais cinza e mais escorregadio. Um momento que deveria ser de emoção e orgulho virou algo nas linhas de “vamos tirar uma foto ali com a plaquinha que prova que chegamos até aqui e ir embora deste inferno logo”.
O acampamento base – a tempestade tinha acabado de começar. A montanha atrás NÃO é o Everest.
A neve deixou a volta muito mais emocionante e fomos nos equilibrando entre pequenos desfiladeiros e pedras soltas. Estava bem frio, estávamos molhados e cansados, mas mesmo assim foi nesse momento que a nossa ficha caiu, que percebemos o que tínhamos acabado de fazer. Chegamos no basecamp e ainda estávamos enfrentando uma nevasca, coisa que não é para qualquer um. Me senti como um antigo viking cruzando uma planície gelada com meus companheiros de exploração. Não tenho a menor ideia porque pensei nisso, afinal o que tem a ver um viking com os Himalaias? Mas eu sou a pessoa que às vezes pensa que montar em um avestruz é o mais próximo que podemos chegar de montar em um T-Rex, então perdoem a falta de coerência da minha mente.
Foi sensacional, foi marcante e foi foda. Mas voltar para Gorak Shep foi horrível. Como eu já disse, nossas roupas estavam encharcadas e a vila é o inferno gelado na terra. Demoramos muito para nos aquecermos de novo e tivemos que ficar boa parte da noite em frente ao fogão/caldeira do lodge tentando secar as únicas roupas de frio que tínhamos. E aí na hora de dormir ainda tivemos que enfrentar um quarto com uma temperatura negativa. Eu tava quase colocando fogo no meu saco de dormir para me aquecer um pouco. Iria morrer? Sim. Provavelmente causaria uma tragédia? Sim. Mas com certeza eu iria desta para melhor bem quentinho e feliz.
No acampamento base – não parece mas a tempestade estava bem forte.
Foi uma noite tenebrosa. Talvez mais pela minha ansiedade do que pelas dificuldades do clima. Não consegui pregar o olho. Talvez pelo de que teria que acordar às 5 da manhã para subir um pico próximo da vila chamado Kala Patthar. A Marina estava tranquila, já tinha pulado fora dessa. O Kala Patthar é o pico mais alto que alguém pode subir sem conhecimento técnico, basicamente uma ladeira gigante que te leva até quase 5.600 metros de altura. A ideia é subir bem cedo pois assim é possível ver o sol nascendo atrás do Everest e ainda dá tempo de voltar e fazer o dia render, afinal o plano era começar nossa descida de volta para Lukla no mesmo dia. Sei que minha insônia foi tanta que acordei nosso guia/porter umas da 4 da manhã e partimos mais cedo para a empreitada.
Logo que saímos percebi que o céu estava muito claro, com as estrelas brilhando intensamente no firmamento. De longe dava para ver as lanternas dos trekkers que já tinham começado a subida ao cume. Não demorou e comecei a me arrepender da minha decisão. Talvez tenha sido efeito das roupas ainda semi molhadas ou só o clima que estava mais inclemente ainda, mas comecei a sentir um frio avassalador nos pés. Começamos a subida e eu dei um belo de um gás deixando muita gente pra trás. Também quase cuspi meu pulmão no processo e quando descobri que minha arrancada não serviu de nada, pois ainda tínhamos umas 2 horas de subida, quis chorar. O caminho estava tomado pela neve, algo incomum para essa época do ano, o que deixou a trilha mais cansativa e traiçoeira. Para melhorar tudo escorreguei, como faço sempre, pois acho que tenho algum gene que me faz escorregar mais do que o normal, e enfiei a mão sem luva na neve, o que foi um ótimo remédio para curar o frio que sentia no pé, porque aí eu percebi que dava pra ser muito pior. Lembrando que ainda era de madrugada e o sol não tinha aparecido ainda. Embora a vista do vale do Khumbu iluminado pelas estrelas tenha sido quase onírica, minha mão estava virando uma garra atrofiada de tanto frio. Eu só queria que o maldito sol surgisse logo por trás do Everest.
Subida do Kala Patthar – o sol estava quase aparecendo.
A subida até o pico foi muito difícil, talvez o único momento na trilha toda em que eu me senti verdadeiramente cansado e sem ar. Não sei se fui em um ritmo muito apressado ou se sou mole mesmo, mas sei que quando cheguei lá só queria sentar e descansar. Só depois de alguns minutos que consegui tirar algumas fotos e apreciar a vista, uma visão realmente incrível de um vale gelado cercado pelas maiores montanhas do mundo. Uma demonstração de pura potência da natureza. Fantástico e surreal. Mas eu estava com muito frio e só queria sair dali, por isso logo comecei a descer. Encontrei dois amigos brasileiros chegando, até mais acabados do que eu, e ainda avistei um rapaz vomitando ao longo da trilha. Pelo menos não tinha sido difícil só pra mim. Na descida eu só queria me jogar na neve e ir rolando até lá embaixo, um jeito mais rápido, fácil e perigoso de cumprir o objetivo. Mas não, o nosso frágil corpo humano impede esses momentos de diversão, por isso tive que ir escorregando pela trilha, igual um bocó. Mas finalmente cheguei na base e voltei pro lodge, com uma carinha tão sadia quanto a de alguém que acabou de sobreviver a uma explosão atômica. Mal conseguia falar. Foi sensacional ter atingido o cume do Kala Patthar, poder dizer que já escalei algo nos Himalaias e cheguei a 5.600 metros de altitude, mas a melhor parte da experiência toda foi voltar.
O sol quase aparecendo atrás do Everest (o pico do meio)
E o dia não acabou aí. Depois de toda provação nas alturas só tive tempo de tomar café e logo iniciamos nossa descida. Andamos cerca de mais 6 horas e passamos de 5.200 metros para 4.200. Passamos por precipícios escorregadios e lamacentos, ribanceiras trapaceiras e trilhas inundadas. Tudo culpa do amontoado de neve das nevascas recentes que começava a derreter. Claro que eu, que já levo mais tropeções que o ser humano médio e ainda estava em condições físicas horríveis pela subida feita mais cedo, quase me esborrachei no chão várias vezes. Me sentia uma casca de ser humano se arrastando pelo gelo. Até os trekkers mais idosos me ultrapassaram (e ainda deviam me xingar). Eu sei que esse tipo de trilha não é sobre competição com os outros, mas fica difícil se sentir bem quando até a velha surda da Praça é Nossa é mais rápida que você. E olha que sou acostumado a perder para a terceira idade, certa vez tentei acompanhar o ritmo do doutor Drauzio Varella, que encontrei correndo no Ibirapuera, e quase morri. Enfim, foi nesse ritmo modorrento que chegamos em Periche, uma cidade no outro lado do morro que cerca Dingboche. Lá conseguimos finalmente descansar com mais conforto e dormir bem.
Vou resumir um pouco a volta, pois se não precisarei de umas três posts para contar tudo sobre a experiência. A única parte diferente do caminho de ida foi passar por Periche. Para chegar e sair de lá andamos pela porção baixa do que parecia ser um antigo leito de rio. Na ida tínhamos andado por cima do morro que acompanha esse leito e realmente a visão mudou. Uma mistura de alagado com deserto cinza tomou conta do cenário sempre vigiado ao fundo pelo Ama Dablam. Depois de cruzar uma ponte e andar por uma série de incríveis penhascos voltamos para o “caminho normal”. O retornar foi uma experiência nova, ângulos diferentes transformaram vistas teoricamente familiares em novidade. Voltar também foi cansativo, afinal para descer caminhamos em 3 dias o percurso que subimos em 8. Haja força no joelho para aguentar o tranco.
O caminho da volta
No fim a vontade de terminar a experiência toma conta do espírito, não tem jeito. Sabe aquela sensação de “ok, já cumpri meu dever agora só quero relaxar”? Então, talvez isso também tenha nos deixados mais preguiçoso e dificultado um pouco o retorno.
Foi também um alento sair do frio insuportável e chegar apenas no nível do frio meramente tolerável. Alegria maior ainda foi quando voltamos a ver árvores, florestas e bosques.
E uma hora acabamos chegando em Lukla, de uma forma meio sonolenta e arrastada, mas chegamos. O único pico de emoção na volta foi causado pela notícia da morte de um companheiro de trilha, ele provavelmente escorregou em um dos trechos mais tranquilos do percurso, o que nos fez pensar em todos buracos, ravinas e desfiladeiros lamacentos e escorregadios que enfrentamos. A vida é estranha e quis o destino que dois seres humanos de pouca estatura e uma tendência para cair no chão conseguissem chegar são e salvos após essa aventura. Ainda bem.
Mas os perigos da jornada ainda não estavam todos superamos. Nós chegamos em Lukla e pelo menos a andança tinha parado, mas no dia seguinte ainda precisaríamos enfrentar o maldito aeroporto daquele lugar. Eu já descrevi bem o nervoso que os aviões e a estrutura de Lukla e Ramechhap me causaram na ida, mas com certeza é pior sair do que chegar em Lukla. A porcaria do aeroporto fica na base de um penhasco e aquele avião bi-motor sem vergonha tem que acelerar com tudo e se jogar da montanha em um ato de fé que eu não estava preparado para cometer. Passei um nervoso ali que nem os desconfortos intestinais na Cidade Proibida tinham me causado. Um rapaz no nosso voo que até chorou. Foi intenso e agora, contando essa história, eu acho que é uma experiência válida e bacana. Mas que na hora dá um baita medo, a isso dá.
A desgraça da pista do aeroporto acaba ali mesmo. É um penhasco.
O importante foi que deu tudo certo, pousamos em Ramechhap e após mais uma van da morte de algumas boas horas (meu deus o Nepal poderia ser um pouquinho mais plano), chegamos em Katmandu. Estava terminada uma das experiências mais especiais da viagem.
Marina e o Lola
Ainda ficamos alguns dias no Nepal e depois fizemos uma travessia insana para a Índia por terra, tópico do próximo post.
Esse relato cobre eventos de 19/12/2018 a 25/12/2018
Isso aí é normal no Vietnã
Olá, moradores do grande limbo cósmico chamado planeta terra. Estamos no fim de mais um movimento de rotação do nosso planeta (ou começo, sei lá quando você vai ler esse post) e nada melhor para acalmar a alma do que ler sobre as desventuras e percalços de pessoas que foram se aventurar por essa grande esfera maluca. Sim, eu disse esfera. Ou melhor, geoide. Aqui é uma blog livre de terraplanistas, se você acredita que nosso planeta é achatado por favor feche seu computador e vá ser feliz dentro da sua imaginação perversa. Ou não, eu gosto de ter leitores. Fica aí, meu chapa.
No último relato descrevi nosso preguiçoso tempo por Luang Prabang, a famosa CIDADE GOSTOSA. Um lugar lindo, calmo e bom para comer, a base da felicidade para qualquer casal adepto da inércia como nós.
Como vocês podem imaginar foi difícil dar tchau para Luang Prabang, principalmente porque para ir embora de lá pegamos um avião que parecia saído do Caçadores da Arca Perdida e confesso que, pela primeira vez na vida, fiquei com medo de voar. Pelo menos a tarde estava linda, um pôr do sol estarrecedor acompanhou nossa decolagem e deixou todas montanhas em torno da cidade douradas, o último presente de Luang Prabang para nós. Um bom dia para presenciar uma pane nas hélices do avião, cair no coração da selva e ter que comer os passageiros mortos para sobreviver. Se fosse para acontecer uma desgraça, melhor que acontecesse em um cenário bonito.
Felizmente isso não ocorreu e após o paradoxo tempo de 60 minutos chegamos em Hanoi, Vietnã. Para nossa surpresa o tempo estava mais “fresco” do que considero confortável, um prelúdio para o que estava por vir na nossa jornada.
Hanoi é um caos apaixonante. Uma mistura louca de scooters, buzinas, carros, cafés e pessoas do mundo todo. Sempre em movimento e sempre com algo para ver. Acho que senti aqui o que esperava ter sentido em Bangkok, aquele clima “sujeira underground interessante”. Para começar nada diz melhor “bem vindo à Hanoi” do que quase ser atropelado por uma moto. O trânsito é intenso e maluco, as calçadas existem apenas para estacionar scooters e semáforos são meramente decorativos. Atravessar a rua aqui é o maior ato de fé que praticamos na viagem – você pisa no asfalto e de repente se vê cercado de vietnamitas motorizados por todos os lados, me senti como Simba fugindo dos antílopes, búfalos ou o que quer que fossem aquelas animais que participaram de maneira robótica no assassinato de Mufasa (RIP). Claro, depois de um tempo a loucura acostuma e aí não é preciso nem olhar pros lados para atravessar uma rua, porque você sabe que a turma vai desviar, o movimento do trânsito lá é quase como um fluxo orgânico que sabe sempre encontrar seu caminho. Apesar de ser mais seguro do que aparenta ainda classificaria “ser pedestre em Hanói” como esporte radical. O Vietnamita tem uma habilidade com a scooter que é digna de nota, praticamente são os mongóis do séculos 21, só que invés de fazerem tudo em cima de cavalos usam motores de até 110 cilindradas. Sei que em diversas partes da Ásia a motinho é o principal meio de locomoção, inclusive na Tailândia e Laos por onde já tínhamos passado, mas mesmo assim elejo o Vietnã como a terra suprema da imprudência e habilidade sobre duas rodas. Talvez apenas os indianos consigam competir com os vietnamitas.
Hanói é uma cidade grande, com muito cinza e um bairro turístico chamado Old Quarter que é um chamariz para almas noturnas a procura de diversão. Bares, boa comida, uma explosão de luzes neon e aquela sensação de que alguma coisa inusitada está sempre a espera dentro das portinhas apertadas dos inúmeros estabelecimentos duvidosos de entretenimento. Vimos algumas poucas heranças da guerra: o museu, a prisão e restos de equipamentos americano pelas ruas, como tanques e caças, mas não visitamos esses lugares (sem falar que o quebra-pau nem chegou tão ao norte assim).
A beleza peculiar de Hanói
Achei uma cidade interessante de se visitar a pé, inclusive achamos um lugar (sem querer) que depois descobrimos ser bem turístico, são os trilhos de uma linha de trem que corta o meio da cidade. Existem diversos bares e cafés ao longo deles, bem coisa de hipster. Também existem milhares de casas amontoadas uma em cima das outras, um acúmulo vertical de concreto que acompanha a linha. Passamos nosso fim de tarde por lá e a Marina deixou uma marca permanente no local, pois pisou em toda uma passagem recém cimentada por um velhinho que quase surtou quando viu ela sapateando em cima do trabalho dele recém terminado. Claro que isso foi sem querer, mas o senhor não quis nem saber e começou a gritar para nós dois que por puro instinto nos mandamos de lá. A Marina estreou o que ainda irá se tornar a famosa calçada da fama de Hanói.
A linha do trem 1A linha do trem 2
Depois de uma curta estadia na cidade partimos para Sapa, uma cidade bem ao norte do Vietnã, na região montanhosa do país. Para chegar lá pegamos um busão “leito” que nunca tinha visto na vida, nele o assento já é uma espécie de cama, algo estranho, mas confortável (se você não for muito alto). Pegar ônibus, van ou qualquer outro transporte terrestre pelo país é uma aventura, principalmente na região das montanhas, que é dominada por estradinhas estreitas e sinuosas. Digo isso pois os vietnamitas preferem usar a buzina ao freio.Impossível manter a conta do tanto de barbaridade motorizada que vi por lá.
Depois de uma boa dose de desconforto, dor, uma dose de bílis na garganta e paisagens exuberantes chegamos em Sapa, uma espécie de Campos do Jordão vietnamita. Isso se Campos estivesse em eterno estado de construção e fosse dominada por chineses. Não me levem a mal, a cidade fica em um lugar muito bonito, uma região cheia de vales e desfiladeiros, e ela própria é charmosa. E também bem turística. Até que gostei de Sapa, embora o frio estivesse apertando, mas nosso objetivo lá era fazer um trekking pelos vales e montanhas nos arredores da cidade, coisa que começamos no dia seguinte.
Os caminhos de Sapa
Nosso passeio foi um trekking de 3 dias e 2 noites e fomos com uma guia local, moradora das inúmeras vilas que ficam espalhadas pela região. Estávamos no extremo noroeste do país, um lugar que abriga 5 tribos nativas diferentes (com costumes, roupas e idiomas diferentes) e passamos por vilas de várias delas pelo caminho, foi muito bacana. Pegamos um tour privado, mais caro, mas que seguia uma rota bem menos utilizada por agências turísticas e valeu a pena, senti que passamos por locais bem autênticos e como eu adoro andar, fazer trilha é uma das atividades que revive o velho “espírito de aventura” de que tanto gosto de sentir. Não sei explicar, mas parece que vagando por aí tenho a impressão de estar interagindo com a natureza e os ambientes que visitamos. Aliás, que cenários incríveis. Atravessamos terraços lamacentos de arroz, trilhas que rodeavam montanhas e desfiladeiras, florestas de bambus e vales que dormem à sombra do monte Fan Si Pan, a montanha mais alta da Indochina. Em um desses vales, no nosso segundo dia de caminhada, senti uma alegria e paz que há muito tempo não sentia, foi uma avalanche bucólica que me deixou leve e calmo. Foi um momento de quase parar no tempo, a realidade consistia apenas de nós três e o sons da natureza deslizando por um corte em meio às montanhas do Vietnã. Desculpe o lapso poético aqui, prometo que nunca mais irá acontecer.
Esse vale era demais
Outra ponto que gostei muito do passeio foi que dormíamos em casas de locais e fazíamos refeições com eles. Os lugares eram simples, porém acolhedores, e a primeira noite foi memorável, pois o anfitrião da casa (que não falava uma palavra de inglês) me encheu de vinho de arroz, ou como eles chamam aqui, happy water. Foi divertido e um pouco tenso ter que virar muitos shots daquele negócio com um gosto bem mais ou menos, mas seria falta de educação recusar, ainda mais porque os anfitriões estavam recebendo um amigo. Mas deixa eu elucidar aqui, não é que foram 2 ou 3 shots. Nem 4 ou 5. Nem 6 ou 7. Foram mais de 10 shots (não lembro quantos exatamente) de um destilado potente. Olha, o pessoal teve sorte que eu não vomitei todo frango e rolinhos primavera que tinha comido, porque as chances eram altas. Consegui me segurar, não passei vergonha e apenas fiquei vermelho como meus companheiros de bebedeira. Passei no teste e agora já posso integrar qualquer exército revolucionário do norte do Vietnã. Enquanto isso a Marina conversou muito com nossa guia e a nossa anfitriã, as únicas que falavam inglês no local e ambas de tribos diferentes. Ela pode entender em primeira mão como os povos das montanhas se viram de tudo quanto é jeito para sobreviver e mandar os filhos para as escolas, mesmo quando não é temporada de colheita de arroz. Foi uma experiência profunda culturalmente e enquanto isso eu só estava me afogando em álcool e decisões ruins.
Rapaz….
Interessante que depois do jantar todo mundo senta perto do fogo usado para cozinhar, que faz vezes de lareira, e conversa um pouco. Nessa noite apenas eu e a Ma estávamos no homestay, por isso interagimos bastante com a família da casa, todos da tribo Red Dzao. Nossa guia (a querida Mu), por exemplo, é Hmong e mora apenas alguns quilômetros de distância de onde dormimos.
E essa foi a tônica do trekking todo. Cenários incríveis, situações inusitadas (até por um velório passamos), contato local (aparentemente) autêntico e aquela mistura gostosa de frio e suor que deixa qualquer um que não está com as doses de Energil C em dia resfriado. Demos uma baita sorte pois fizemos a trilha antes do tempo virar um amontoado de nuvens cinzas, temperaturas perto de 0 e tristeza.
Boa companhia
Voltamos pra Sapa no dia 23 e decidimos ficar duas noites na cidade pra relaxar um pouco e comemorar o natal. Não conseguimos, pois na véspera da festa do bom velinho ficamos conversando com a família por ZAP e quando saímos para comer tudo já estava fechado na cidade, menos uns poucos bares, por isso tomamos uma cerveja com valor exorbitante e jogamos truco. Um brinde às tradições natalinas.
Depois de Sapa decidimos continuar pelo norte do país, mas dessa vez fomos para uma região um pouco mais central e bem perto da fronteira com a China, a província de Ha Giang. Nossa viagem até lá foi conturbada, como são todas viagens em vans apertadas na Ásia, mas isso é assunto para o próximo post. Não perca nossa aventura de moto por penhascos vietnamitas.
Esse relato cobre os eventos de 23/09/2018 a 02/10/2018
Olá, aflito leitor(a). Pode acalmar seu coração e alegrar a alma, o bálsamo de cada dia para combater as mazelas da realidade e a dureza chamada vida está de volta. Espero que o capítulo de hoje não o faça desistir de tudo. Calma, alguma coisa ainda vale a pena. Eu espero. Pelo menos hoje eu conto como já quase vomitei em restaurantes japoneses, então viva o suficiente para ler sobre isso.
O último relato tratou apenas de Tóquio, mas a partir de agora vou acelerar um pouco as coisas, ou terei que escrever sobre essa viagem para sempre.
Nosso próximo destino no Japão foi Kyoto, um lugar que curtimos demais. Calma, tradicional e animadinha ao mesmo tempo. O melhor jeito de classificar Kyoto, para mim, é dizer que é uma baita cidade gostosinha.
Demais ver a vida da cidade florescendo as margens do Shirakawa. A melhor coisa que fizemos lá foi alugar umas bicicletas e se perder, se perder foi legal (de novo). Passamos pelo templo dourado, pela floresta de bambus (não encontrei o Silvio Santos lá), pelo magnífico rio cor de jade até chegar, já a noite, em uns bairros residenciais afastados, onde vi uma molecada jogando baseball a beira do rio. Perguntei se eles assistiam Super Campeões e ninguém me deu moral. Fui chamado de Gaijin por uma senhora e ainda comemos em um restaurante local. Um belo dia.
Kyoto foi isso pra mim, uma cidade incrível com vários templos fascinantes e cenográficos, mas que ao mesmo tempo não se resumia apenas a cultura, pois consegue mesclar isso com diversão e comida (que é um sinônimo de diversão). E falando nisso, quase ia me esquecendo, rolou mais um momento de leve euforia emocional – visitei, sem querer, um templo pertíssimo de uma das batalhas mais famosas do Musashi (foi o Sanjūsangen-dō). É aquela em que ele acaba de vez com o clã Yoshioka. Aliás, o templo em si era bem legal, tinham 1001 estátuas de uma mesma entidade budista, e não era qualquer estátua mequetrefe não, posso dizer com segurança que a empreitada deu trabalho viu. Só estátua TOP (me perdoem o uso da palavra). Se você não sabe quem é Musashi desculpe a menção aqui, mas a sua história foi parte integral da minha adolescência e também culpada em me viciar em assuntos nipônicos e fazer eu pensar que um dia poderia ser o samurai estrangeiro que chega do nada no Japão e começa a quebrar todo mundo na porrada. Eu. Que mal sei andar sem escorregar. Enfim, em um momento da minha vida essa fantasia foi intensa e real.
A tradição em Kyoto
Ainda em Kyoto fizemos uma viagem bate e volta pra Nara, que tem vários templos, um parque bacana, uns veados e mais uma porção de turistas. Legal mesmo lá. Talvez o local mais cenográfico do Japão, um país extremamente cenográfico. E também com o melhor “Big Buda” de todos os Budas gigantes que já vi pela viagem. Mas o mais bacana foi ter ido lá, sem querer, no dia em que estava acontecendo um festival local. Era em homenagem a uma mulher da corte do imperador (Nara já foi capital do Japão) que foi rejeitada por ele e se afogou num laguinho local (rapaziada intensa né). Enfim, o festival consiste no lago ser enfeitado com lanternas (bem bonito) e gelo seco enquanto uns barcos ficavam passando com atores cantando e encenando a história toda. Foi bem interessante, mas fiquei decepcionado. Digo isso pois: sei lá por qual razão enfiei na cabeça que no fim da encenação eles colocariam fogo nos barcos. Ia ser uma baita visão, já estava escuro, seria legal de tirar fotos. Imagina o barco pegando fogo em contraste com a luz das lanternas? Mas porra, fiquei esperando, esperando e nada das chamas surgirem. Quase fui eu lá encher tudo de gasolina e jogar um fósforo. Nara me agradou, mas não satisfez minhas fantasias piromaníacas.
Telas de Osaka
Depois disso fomos para Osaka, cidade em que não fizemos nada e foi demais. Quer dizer, SOBREVIVEMOS a um tufão lá (que no fim foi só uma chuva forte). E comemos. Muito. Porra, achei Osaka demais para comer. Tem um centrinho animado, (de novo) a beira do rio, tudo iluminado, beira o ataque epilético. Mas é bacana. Ficamos dormindo em Osaka e fizemos algumas viagens de 1 dia para cidades “próximas”. Fomos para Miyajima, Hiroshima e Himeji. Miyajima é a Ilhabela japonesa, viraria um pescador lá com certeza, muito bonito. Em Hiroshima só visitamos o Memorial da Paz – pesado, intenso e algo que todo mundo deveria conhecer.
O Tori
Himeji é uma é baita cidade legal, parece moderna, mas é calma. E aí no meio dos Predio tem um PUTA castelão bonito. Um colosso branco pairando sobre a cidade. Entrar lá foi uma experiência bem interessante, ainda mais para quem jogou muito Tenchu quando jovem. Tentei fazer um desenho do castelo uma hora que sentei em um de seus terraços, sabe, dar uma de artistão que puxa o caderninho no meio do rolê para desenhar algo? Então, queria ser assim, mas eu sou reprimido demais. Qualquer pessoa que passava atrás de mim quase me causava um infarto. Não preciso nem dizer que o desenho ficou tão bom quanto o plantel das últimas eleições no Brasil. Ficou ohh. Show. Depois visitamos o jardim anexo ao castelo. Amigos, que mágica que tem os jardins japoneses né? Uma capacidade de acalmar a alma impressionante, sem brincadeira. Um tanque com carpas no quintal faz toda diferença, pode providenciar um agora.
Vista do castelo em Himeji
Em Himeji também experimentei um dos pontos baixos da minha vida. Entramos em um game center (lugar dos sonhos com um milhão de fliperamas legais, mas os japoneses só escolhem os mais estranhos de música para jogar) e perdi para Marina no Mario Kart (após ganhar uma, claro). Não perdia no Mario Kart desde 1997 – podem procurar essa informação que tem na internet.
O castelo
Ainda em Osaka aconteceu um fato bizarro. Tinha um francês muito chato no nosso hostel, e ele não era apenas chato, ele era maluco. Sabe aquele personagem bem estereotipado do doidão que ficou mais maluco ainda por causa do uso de drogas? Que é tão caricato que você nem acha real? Era ele. O cérebro do cara devia ter derretido já, sem falar que o sotaque (ao falar inglês) era puxado demais pro francês. Não dava para entender nada do que ele dizia e ainda dava vontade de rir. O cara me pediu dinheiro, me pediu meias (??), queria me mostrar umas músicas que ele fazia. Ele grudou em mim. Até ai tudo bem, eu fugia dele pelo hostel e ele parecia bonzinho. Até um dia em que fomos cedinho pegar nossas roupas no topo do prédio (estavam secando, pois tínhamos lavado) e quem estava lá, dormindo ao relento como um escoteiro de meia idade que abusou da bebida nos últimos anos? Nosso amigo francês. E não, ele não estava dormindo, que erro, ele estava MUITO acordado, a mente a um trilhão por hora enquanto eu tinha acabado de abrir os olhos. Sei que ele falou, falou, falou e quando olhei o rapaz estava pendurado no parapeito do prédio (perninhas balançando pra baixo e tudo), olhando pra mim e perguntando “Será que eu morro se cair daqui?”. Sim, ele morreria.
Eu estava tão entorpecido que só pensei “Ah pronto, agora o cara vai morrer e vai fuder nosso passeio do dia”. No fim deu tudo certo, ele não caiu, conseguiu se puxar de novo pra cima e eu pude sair de lá o mais rápido possível. Quando voltamos para o hostel ele tinha ido embora, mas depois vimos ele andando em uma avenida em Osaka, em direção ao horizonte. Lendas dizem que ele anda até hoje procurando alguém para encher o saco. Vá com deus meu doce príncipe.
E agora que eu já falei sobre todas essas cidades, posso contar das vezes em que eu quase vomitei nelas. Uma em Tóquio e outra em Hiroshima. Ambas ao comer algo que não consegui processar direito no restaurante. Mas quero tirar uma coisa da frente – adorei a comida no Japão, mesmo. Não sou o maior admirador de peixes e frutos do mar e mesmo assim gostei muito, mas tem algumas coisas que não me descem. O primeiro causo aconteceu quando tentei comer um okonomiyaki de frutos do mar. Um jeito rude de descrever o okonomiyaki é dizer que ele é uma espécie de omelete, e nesse restaurante em que fomos (como em outros vários), o garçom prepara o prato na sua mesa, que é na verdade uma chapa quente. Então ele joga tudo ali: peixes, camarão, ovo, outros bichos estranhos e faz a massa. Bom, comecei a comer, estava até que curtindo, mas aí me deparei com um gosto intragável pro meu paladar. Dei aquela leve arqueada pra frente, sabe o semi movimento estomacal que seu corpo faz para avisar que algo vai sair pela boca? Me segurei, respirei fundo e tentei de novo. Opa, quase regurgitei tudo de novo. Foi nessa hora que a Marina percebeu o que estava acontecendo e invés de me ajudar começou a gargalhar histericamente. Eu ali tentando vomitar com discrição e ela estragou tudo. Bom, respirei mais uma vez e pensei “agora vai”. Não foi. Quase que um okonomiyaki desconstruído voltou a mesa, e pior que era uma chapa, então ia virar omelete de novo. Vendo o absurdo da situação e não aguentando mais as risadas de minha amada mulher resolvi cuspir de forma discreta o maldito pedaço de comida.
A outra vez em que quase passei vergonha no restaurante foi em Hiroshima e essa nem tem nada a ver com frutos do mar. Eu singelo e com fome resolvi não errar e pedi um arroz frito com frango. Mas, meus amigos, veio o frango mais vivo e triste da história no arroz. Eu quase podia ouvir ele implorando “não me coma”. De novo resolvi encarar, de novo não deu certo e de novo a Marina riu de mim. Dessa vez fui mais rápido em desistir do prato.
Essas foram minhas desventuras gastronômicas no Japão, espero que elas não tenham estragado o apetite de alguém. E sim, eu sempre consigo introduzir algum detalhe escatológico nos textos. Desculpe.