Ferrovia Transiberiana ou o capítulo do lencinho umedecido

Esse post cobre os eventos de 17/08/2018 a 27/08/2018 (acho)

O leitor mais fiel ou mais atento deve se lembrar de como comentei o quanto trens seriam importantes para nossa estadia na Rússia. Ora, isso porque o grande plano nesse país gigante era justamente cruzá-lo de trem, como intrépidos desbravadores indo em direção ao misterioso oriente em cavalos feitos de fogo e aço. Aventureiros a bordo do peculiar. Caçadores de emoção se jogando no desconhecido. Ou melhor (e mais verdadeiro), dois desanuviados viajando tranquilamente com milhares de famílias russas.

E já que estou em um raro momento de sinceridade, tecnicamente o nosso plano (e o que acabamos fazendo) era usar a rota trans-mongoliana e não a Transiberiana de cabo a rabo, afinal não fomos até Vladivostok (do outro lado do país) e sim desviamos o trajeto para Ulan Bator, na Mongólia.

Foi sensacional de qualquer jeito.

Nossa jornada começou logo após a corrida contra o tempo em São Petesburgo, em que pegamos nosso trem faltando 5 minutos para ele partir (e lá eles são pontuais). Após achar nosso vagão embarcamos cansados, suados e duas ótimas representações do que são seres humanos sem condicionamento físico. Cambaleamos até nossos lugares e quase morremos para colocar nossas mochilas no local adequado, acima de nossas camas, que eram ambas a parte de cima do beliche.

Para os que não lembram da confusa descrição que dei dos trens da terceira classe no post anterior, nesses vagões não existem cabines fechadas, apenas dois beliches em uma espécie de “cabine aberta” e um outro beliche enfiado num canto triste do corredor. Ou seja, todo mundo vê todo mundo a todo o momento (mesmo nos mais íntimos). Refeições acontecem em uma mesinha comunitária que fica entre os dois beliches. Para quem fica no corredor a cama debaixo “vira” uma dessas mesinhas. Vou colocar uma foto e tudo ficará mais claro (espero).

“Cabine” da terceira classe
Beliches do corredor

Claro que quem está nas camas inferiores tem mais controle sobre o terreno da alimentação, afinal a mesa está ali a poucos centímetros de alcance, por isso, e pela comodidade de não ficar escalando toda hora, os locais inferiores esgotam mais rápido nos trens. Mas é aí que entra a etiqueta da locomotiva, que fomos aprendendo aos poucos, em que é aceitável que as pessoas do beliche de cima fiquem sentados, como em sofás, nas camas inferiores, pois elas precisam usar a mesa em algum momento e, por mais que essa seja uma afirmação contra intuitiva, se enchem o saco de ficarem deitadas o tempo todo (mal da pra sentar nos lugares de cima).

Agora você já sabe, se algum dia estiver em um trem russo e acordar com alguém te chutando muito provavelmente essa pessoa quer usar a mesa que você está bloqueando com seu corpinho. Na verdade não é tão diferente assim da dinâmica de qualquer trem leito compartilhado, mas para nós era novidade.

Marina curtindo a disputada mesinha

Estávamos indo para Kazan, que fica a 22 horas de São Petesburgo. Lá faríamos uma de nossas paradas pelo trajeto.

Ficaríamos dois dias em Kazan e depois partiríamos para Irkutsk (sendo esse o maior trajeto da nossa jornada) e de Irkutsk pegaríamos mais um trem até a Mongólia, mais precisamente Ulan Bator. Fizemos tudo isso mesmo e no fim contabilizamos 5 dias (não seguidos) dentro do trem. Haja livro e Netflix.

Fato importante que ainda não mencionei, você compra os tickets “por perna” e não uma passagem só para Transiberiana toda. Quer dizer, você pode ir direto de Moscou a Vladivostok, mas se prepare para ficar muitos dias seguidos no trem. Caso queira parar pelo trajeto é preciso comprar varias passagens diferentes. Para Kazan já tínhamos comprado o bilhete em Moscou, quando a senhora eficiente mas nem-tão-simpática-assim nos ajudou.

Voltando ao relato – Isso tudo quer dizer que tínhamos longas horas de trem a serem enfrentadas com corpos suados e desgraçados fisicamente. Felizmente nossos companheiros de “cabine” nos ajudaram a ajeitar nossas coisas e depois conseguimos nos limpar com o maior amigo desse tipo de viagem, o lencinho umedecido. Claro que nesses trens não tem chuveiro, muito menos na terceira classe onde o banheiro parece uma armadilha prestes a te jogar nos trilhos, por isso a higiene a base da umidade desses produtos para bumbum de neném é essencial.

“Limpos” e mais tranquilos finalmente conseguimos interagir com nosso colegas, pai e filho vindos do Tajiquistão e que tinham ido visitar parentes na Rússia. O pai não falava inglês e o filho, adolescente, tinha um sotaque bem carregado, como se alguém do Casseta e Planeta estivesse interpretando alguém do Tajiquistão falando inglês. Mesmo assim conseguimos conversar, dar algumas gargalhadas e ainda sobrou tempo pra ficar com inveja deles, pois no momento de comer só tínhamos miojo (os vagões tem água quente de graça. Por isso muita gente leva miojo e chá para essas viagens e deixa de pagar uma fortuna na comida suspeita do vagão restaurante) e a dupla fez surgir, do nada, um tupperware gigante com as mais variadas comidas do seu país natal. Cordeiro, frango, batatas e pães caseiros, tinha muita coisa. Eles eram verdadeiros invocadores de comida e aparentemente fizeram um banquete apenas para ter o que comer no trem e ainda levaram tudo no melhor estilo “marmita”. E a gente ali, com algumas Oreos e um miojo sem vergonha. Tristeza.

Entre mordidas e risadas no estilo “estou rindo pois não entendi nada do que você disse” descobrimos que a dupla não gostava muito dos Russos e que aparentemente o Tajiquistão é tranquilo de conhecer. Realmente parece um país incrível, mas depois descobrimos que pouco antes uns viajantes tinham sido mortos num aparente ataque terrorista por lá, então não sei o quão tranquilo o lugar realmente é (lembrando que sou completamente ignorante sobre o Tajiquistão e isso pode ter sido um incidente isolado).

Fora essa interação o que fizemos no trem foi: dormir, ler, escutar música e admirar a paisagem até chegar ao nosso destino.

Para ser sincero essa foi a tônica de todas nossas outras viagens de trem pela Rússia. No começo todos se olham como suspeitos, mas logo uma cumplicidade (que não é necessariamente amizade), se forma. Foi assim com uma senhora e seu neto até Irkutsk e com um coreano figura até a Mongólia.

Visões da Sibéria 1

Sabe aquela história, que comentei lá em São Petesburgo, sobre o trem ser uma explosão de odores? É muito verdadeiro. Os russos viajavam em família, e as famílias levam seus próprios “banquetes” para a jornada. Tem sopa, tem cozido, tem pão, tem coisa estranha pra passar no pão e tem umas coisas mais peculiares, como uma turma que comprou um peixe cru em uma das paradas e começou a corta-lo e comê-lo ali na hora mesmo, tipo um sushi depressivo. Fora as comidas vale lembrar que são vagões apinhados de gente, gente com necessidades fisiologicas e que não tomam um banho decente há a algum tempo. Nossa viagem de Kazan a Irkutsk, por exemplo, foi bizarramente longa, ficamos mais de 48 horas seguidas enfiados no trem, e aí que volta nosso herói lencinho umedecido, salvando os últimos vestígios de higiene que temos nesses lugares. Acontece que nem todo mundo é adepto desse tecido mágico, e aí o bicho começa a pegar. Enfim, os vagões da terceira classe são uma definição clássica de “farofada”, mas é uma farofada boa, bem mais acessível do que esperávamos e o melhor de tudo, é uma farofada pontual.

O famigerado “peixão cru”

Foi uma experiência incrível, pois foi nosso primeiro contato “hard” com os locais de um país. Era fim de verão e vimos as famílias russas voltando para suas casas após as férias. Encontramos estrangeiros apenas na única vez em que visitamos o vagão restaurante, e era uma turma bem de nariz em pé, então fiquei feliz de ter ficado só com os russos de cueca lá da terceira classe.

Uma coisa que perdemos completamente nesses trens, além da privacidade, é a noção de tempo, principalmente durante as pernas mais longas. Dias viram noites e noites viram dias e tudo parece apenas um sonho febril. O nosso querido Einstein devia estar em um trem desses quando disse que o tempo era relativo, pois eu tive a impressão de ter passados algumas vidas ali dentro, e ao mesmo tempo foi tudo apenas um instante. Essa sensação só piora se como nós, você pegar um trem velho e quente. Pra ser sincero demos sorte a maior parte do trajeto, pegando trens “novos” e bons, mas justo no momento em que mais ficamos tempo seguido sobre trilhos o nosso vagão parecia um forno com tecnologia da era dos czares. Quase morri sufocado ali dentro, nunca achei que fosse suar tanto durante uma noite na Sibéria.

Esse foi o famoso “forno nos trilhos”

Aliás pegamos um resto de verão bem potente durante quase todo percurso, foi estranho acompanhar as paisagens “com vida” que passavam pela janela. Eu esperava ver aquela Sibéria melancólica, desbotada e reflexiva, quase como os cenários de um filme do Tarkovsky. Ao contrário, pegamos bastante sol e muito verde, mas ainda era a Sibéria. Casas de madeira naquele estilo único que não sei descrever (veja foto, é mais fácil), construções industriais abandonadas, muitos pinheiros e toda aquela vegetação da tundra (que se intensifica muito a partir de Ekaterimburgo) foram presenças certas no show que rolava fora do vagão.

Incrível ir acompanhando a paisagem. Lá perto do Baikal o clima começou a corresponder às expectativas e tudo ficou mais frio e cinza, então dá para falar que tivemos uma experiência completa na região.

Visões da Sibéria 2

Outra coisa digna de nota, eu falei pra caramba da terceira classe, mas para chegar até a Mongólia só existem trens que tem da segunda classe pra cima, por isso uma das nossas jornadas foi no estilo “mais patrão”. Que não é ruim, mas não é nem de perto tão interessante quanto o que vivenciamos.

Como tínhamos um tempo curto de Rússia, pois ainda precisávamos fazer um tour na Mongólia e depois entrar na China e já tínhamos passagem comprada (uma baita burrada) não conseguimos parar em muitas cidades pelo caminho. Aliás paramos mesmo em apenas duas.

Kazan foi a primeira. Nem tão longe assim de Moscou e ainda do lado ocidental da Rússia, é uma cidade interessante. Não diria notável, mas interessante. Existem influências asiáticas em geral, mas principalmente turcas e muçulmanas, afinal um dos marcos da cidade é uma mesquita (bonita demais, por sinal). Acho que dois dias por lá foram mais do que suficiente. Kazan ainda foi uma cidade de catarse, afinal a memória da copa do mundo ainda estava fresca e foi lá que o Brasil foi desclassificado. Minha intenção era arranjar briga com algum belga nas ruas, mas não encontrei nenhum. Lá também foi onde comi o pior algodão doce da minha vida. E, para não esquecer, foi onde tomamos vodka russa e fomos realmente destratados por um local (única vez), a senhora da estação de trem fingiu varias vezes que não existíamos, por isso aprendemos a comprar as passagens pela máquina de auto-serviço. Gostei de lá, mas provavelmente não voltaria.

A mesquita famosona
Pouca gente sabe, mas Ivan o Terrível era chegado numa bola

Outra cidade que visitamos pelo caminho foi a já mencionada Irkutsk, lá no coração da Sibéria e bem próxima do Baikal, o lago mais antigo do mundo. Eu esperava algo mais “largado”, sabe, estilo a Sibéria isolada que eu sempre ouvi falar, mas achei Irkutsk charmosa e até mesmo jovial. Cheia de casinhas de madeira que são um símbolo da região, mas também com prédios novos, restaurantes da moda e muitos jovens. Lá já da para ver em peso à população asiática que vive na Rússia, principalmente os mongóis, mas essa influência não necessariamente transborda para coisas como a arquitetura local. Enquanto estávamos lá ainda pegamos um ônibus e fomos visitar o lago, que infelizmente não é feito da incrível vodka barata Baikal, salvadora dos porres adolescentes e sem dinheiro.

Irkutsk

Foi um dos poucos dias frios e chuvosos de toda nossa estadia, e uma neblina espessa cobriu o lago. Não foi necessariamente bonito de ver, mas foi interessante. Toda vila em torno daquele mundo de água parecia um cover de Silent Hill e eu tinha certeza que enquanto visitávamos o lugar os moradores estavam em algum porão secreto cultuando alguma coisa antiga e odiosa adormecida nas profundezas. Pra melhorar tudo eu e Marina fizemos uma trilha que parecia rápida, mas demorou um bocado. Ela deveria nos levar a um viewpoint, mas passamos por portões e grades fechadas no vilarejo e demos em algo que eu acho que era uma estação metereológica, em que o cachorro do guarda quase nos matou de susto. Tive certeza que esse era o momento de nossa viagem que os aldeões iriam nos sequestrar e nos oferecer ao deus ancião do fundo do lago. Ainda bem que eles viram que eu não tinha muito valor e nos deixaram ir.

Baikal

Como vocês podem ver eu viajei (na minha cabeça) bastante durante esse passeio, então foi um bom dia. Mas o momento mais incrível dele foi quando, na volta, uma senhora pediu para parar o ônibus (deixando claro que não era uma parada do trajeto), desceu e começou a fazer xixi ali na beira da estrada, com todos os outros passageiros observando. Depois ela voltou como se nada tivesse acontecido e mandou tocar o busão. Paguei um pau para a senhora.

Depois dessa só nos restou partir, também de trem, para a Mongólia, assunto do próximo post.

E termina aqui um relato atabalhoado e um pouco desconexo sobre essa experiência incrível que tivemos bem no começo da viagem e que até agora não sei se assimilei direito. Nossa jornada trans-mongoliana foi assim mesmo, confusa e estranha. E valeu a pena demais.

Caso tenha a oportunidade de fazer algo parecido só vá com mais tempo do que uns 11 dias. Existem varias outras cidades bacanas pelo caminho e quem sabe, vai que você descobre alguma seita milenar russa que tenta controlar as criaturas misteriosas da Sibéria. Boa sorte.

Beijos Quentes

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