Turquia ou A volta dos balões elusivos

ahhhhh Capadócia…

Olá, voyeurs da desgraça, glutões da vergonha alheia e acumuladores de experiências terceirizadas. Para os bravos que ainda leem isso aqui venho com mais uma dose de trevas importadas. Preparam-se, minha alma está sombria, afinal este é mais um capítulo em que falo sobre os malditos deslocamentos de viagem. 

Quem acompanha o blog há certo tempo já sabe que esses momentos de transferência de localidade são sempre estressantes. Sim, nós estávamos de carro na Turquia e dirigir por estradas estrangeiras é quase sempre um prazer, mas depois de visitar as praias do sudoeste do país precisávamos voltar (de carro) até a Capadócia, pegar um ônibus para Istambul e depois pegar mais outros dois ônibus para a Bulgária. E a Turquia não é um país pequeno, então imagina a trabalheira que foi fazer isso tudo. Olha, quem disse que o importante é a jornada e não o destino com certeza não ficou mais de 20 horas torto em um banco de transporte coletivo com a coluna gritando socorro e o nariz captando os mais desagradáveis cheiros. O negócio é não ter destino, pois aí tudo é jornada e tudo destino e as experiências boas e ruins se misturam em um grande caldeirão borbulhante que não dá a mínima para seus anseios por conforto, ou seja, eu fui usar uma metáfora e não sei mais do que estou falando. 

O importante é saber que estávamos em Ölüdeniz, a uns bons 800 km de Kayseri, e precisávamos retornar com nosso possante brocha até a região lunar da Capadócia. 

Estradas por colinas turcas

Voltamos por uma rota diferente da vinda e dessa vez fomos beirando o mar por boa parte do caminho. Passamos por cânions, vales e vilas praianas lindas, tudo no meio daquele cerrado mediterrâneo que é ao mesmo tempo familiar e estranho. Em dado momento viramos para o norte, em direção ao miolo do país, e foi aí que o caminho ficou realmente interessante. Cortamos uma bela cadeia de montanhas, um amontoado de rochas poderosas que ainda não tínhamos visto na Turquia. O sol queimava com gosto no céu, mas sem força, pois o ar estava quase gelado. Certa hora as nuvens tomaram conta do firmamento e a luz deu aquela impressão de se espalhar por aí filtrada por uma lente, o que deixou o percurso todo ainda mais único. De repente começamos a ver vários vendedores de mel na estrada, como se estivessem brotando do chão. Resolvemos parar em uma das mil barraquinhas que dizia ter o melhor mel da região, todas sinceras e todas mentirosas, para tomar um chá. Alguns minutos e uns dois chás depois tínhamos um novo amigo, que provavelmente era gentil por exercício da profissão e tudo bem, pois nós estávamos, mesmo que inconscientemente, cumprindo nossa cota de contato local (coisa que tanto nos cobramos). No fim foi uma transação comercial nos mais diversos sentidos. Engraçado isso de “contato local”. É possivelmente uma das coisas mais valiosas que a viagem pode trazer, mas em certos momentos, principalmente quando você não quer falar nem com a sua mãe com um bolo de cenoura na mão, é também um dos maiores pesos para se carregar, porque você fica se cobrando o tempo inteiro se não está inserido na cultura do país, se não está fazendo amigos, se não conheceu pessoas com histórias incríveis e etc… E tem horas meus amigos, tem horas que tudo que o “coitado” do viajante quer é pagar barato numa cerveja e contemplar a paisagem sem qualquer atividade que envolva comunicação profunda com outros seres. 

Nosso amigo turco que tinha um bom çay

Depois de terminado nosso rabisco pelas colinas turcas finalmente voltamos para Konya, onde passamos uma noite e depois voltamos para Capadócia por uma parte do caminho que, aí sim, já tínhamos percorrido. 

Tivemos uma última madrugada na Capadócia antes de devolver o carro na tarde seguinte, por isso decidimos tentar ver mais uma vez os malditos balões que salpicam o céu de Göreme e região. Fizemos (de novo) todo o ritual: acordamos às 3 da manhã, andamos no escuro até um mirante, experimentamos um leve frio e esperamos. Para quem não se lembra, um tempo antes passamos mais de uma semana na região e não vimos um mísero voo de balão devido ao mau tempo, mas desta vez estávamos esperançosos, pois pelo caminho até o topo do morro encontramos diversos balões sendo preparados para darem bom dia para o sol já na altitude. 

Nosso azar “balonesco” tinha ido embora. Será? Talvez. Não. Acho que não. Droga. Ele não foi embora. 

Foi mais ou menos assim a sequência de pensamentos que passou pelas nossas cabeças até percebermos que mais uma vez a Capadócia iria nos “decepcionar”. Malditos balões, fomos até a grande área, sofremos pênalti, convertemos a cobrança e aí o VAR veio para anular tudo. Não me pergunte a razão, mas de última hora tudo foi cancelado e mais uma vez ficamos sozinhos nas colinas de Göreme. Não é de todo ruim, afinal testemunhamos mais um rasgar de luz no céu do nosso amigo cheio de hélio naquela região esplendorosa, mas, de novo, sem balões. Pro inferno com balões. Agora já estou até conformado e feliz que esses aeróstatos horrendos não atrapalharam nossa vista. Menos lona no céu e mais natureza. Abaixo a intervenção do homem no espaço aéreo. 

mais uma madrugada pelos caminhos lunares de Goreme

Depois de mais essa tentativa frustrada deixamos Göreme para devolver o carro em Kayseri, uma cidade próxima. De lá começamos o rodeio do transporte público: esperamos algumas horas em uma rodoviária, pegamos um ônibus de mais de dez horas, chegamos em Istambul, ficamos em um hotel na rodoviária que gostaria de ser motel, pegamos um ônibus (de mais umas boas horas) logo no dia seguinte para Burgas, passamos pela fronteira, chegamos e esperamos mais um tempo para pegar outro ônibus para Sófia. Foram mais ou menos 5 dias desde que saímos de Ölüdeniz para finalmente chegar ao nosso destino na Bulgária. O melhor é que dava para ir direto de Istambul para Sófia, mas por uma mudança de planos repentina e uma pitada de nossa corriqueira burrice aumentamos ainda mais o tempo de viagem. Não foi nenhum perrengue extremo e tudo foi bem tranquilo, mas estávamos naquele momento da viagem que qualquer coisa que demorasse mais de alguns minutos enchia o saco, então imagine o nosso humor após essa dose nada módica da malha rodoviária turco-búlgara.  

Nosso hotel de rodoviária era bem acolhedor

Alguns dos ônibus que pegamos tinham televisões embutidas no encosto de cabeça do banco da frente, como a maioria dos aviões, mas com um sistema bem mais precário. Tão mais precário que grande parte das televisões não funcionavam, mas em uma das pernas da viagem assisti um filme inteiro. Um filme chinês. Em turco. E deu para entender tudo. E não é piada não, realmente deu para acompanhar a história, mas claro, era um filme de artes marciais (coisa que eu amo), por isso o enredo não era dos mais rebuscados e dependente de falas. Nada como a linguagem universal da porrada. 

E foi assim, de forma cambaleante, meio torta e movida a muita batatinha e refrigerante que demos tchau para a Turquia, um país que chegou de mansinho no nosso itinerário, mas que nos cativou e rejuvenesceu nosso desejo por conhecer. Ficamos mais de mês por lá e ainda faltou muito para desbravar, por isso digo sem medo, podem ir para a Turquia, é um país incrível. 

Saudades Turquia

E aproveitem, porque caso ocorra um acidente e vocês acabem um pouco a esquerda do mapa em um lugarzinho chamado Europa, aí meus amigos, aí o monstro que devora contas bancárias aparece e não sobra ninguém vivo. Mas nossas aventuras na terra das coisas caras serão temas dos próximos blogs. 

Beijos quentes

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Turquia ou Limite vertical praiano

Pôrzão do sol lá pelas bandas de Ölüdeniz

Olá, amigos e amigas

Enquanto a pérfida luta contra a prisão da existência não termina, tentarei mais uma vez quebrar os grilhões da rotina e mostrar para vocês que o que está ruim pode sempre piorar. Já que a moda agora é queimar alguma coisa, bora lascar fogo no bom senso e na (minha) dignidade.

Depois de terminar nosso intenso quente e lotado mergulho ao passado, como relatado no post anterior, continuamos cruzando as planícies turcas em direção ao sol poente, buscando o laranja do céu e as praias do Mediterrâneo. 

Nossa primeira parada nessa empreitada litorânea foi na badalada cidade de Bodrum. Um lugar que não estava nos nossos planos, mas que incluímos para encontrar uma amiga da Marina. 

Bodrum é um lugar bonito, charmoso e cheio. Fantasmas de pele clara, bochechas rosadas e roupas que indicam pouca ou nenhuma familiaridade com uma divertida cidade de praia vagam aos montes por lá. Ou seja, Bodrum é lotada de turistas britânicos. Sim, é um lugar bem turístico, o que quer dizer que tem mais restaurantes, barzinhos, hotéis e loteamentos do que natureza. Não era o tipo de coisa que estávamos procurando, mas nos divertimos no período em que estivemos lá. Tomamos cerveja, comemos bem, observamos um belo pôr do sol e curtimos um dia interessante em uma das praias da cidade. Uma praia simpática, mas de pedra. Você deve estar se perguntando qual o problema, querido(a) leitor(a). Vou falar: praia de pedra é um negócio difícil de engolir. Os frágeis tecidos da realidade estão sempre instáveis em uma praia de pedra, como se o universo estivesse com sinal fraco e um chiado cinza dominasse nossas mentes. Percebemos que algo está errado. E isso acontece em qualquer praia de pedra, por mais bonita que ela seja. É como um andróide que não passa no teste Voight-Kampftt, no fim, por mais bem construído que seja, não é um ser humano. Não estou dizendo que a melhor praia de pedra do mundo é pior que a mais horripilante praia de areia que existe por aí, só estou dizendo que é complicado gostar desse negócio. E antes que alguém venha me dizer que pedra é bom porque não gruda e nem é invasivo como areia eu só tenho a dizer: você não sabe curtir uma praia, você não merece uma praia e você nem deveria pisar numa praia. Areia é o melhor denominador comum da sociedade, irrita e cola no corpo sem qualquer tipo de distinção, é o elemento que veio para nos mostrar que no fim somos todos iguais. Quem se dispõe a “enfrentar” a areia sabe que ela sempre vence, não importa quem você seja. E se não for para sair parecendo um frango à milanesa eu nem vou à praia. Enfim, desculpe o tom autoritário, mas esse é meu blog e o único ambiente no mundo em que eu posso exercer minha ilusão de poder, então me dê licença. 

Bodrum e suas via marítimas entupidas

Bodrum foi um ponto estranho no roteiro, mas divertido. Encontramos amigos e pudemos observar uma gama de personagens exóticos que rondam pela cidade, desde senhoras ricas e caricatas que andam com cachorrinhos birrentos a tiracolo e parecem saídas do desenho do Tintim a velhos bêbados que ficam aprisionados em seus pequenos barcos enquanto suas almas vagam livres por aí, esses saídos direto de uma obra Hemmingwayniana. O mais emblemático deles parou em uma mesa ao lado da nossa em um barzinho, sentou-se com os jovens que a ocupavam e começou a tocar a pior melodia que já saiu de qualquer violino do mundo. Tudo isso sem qualquer coisa parecida com um convite. No fim contou umas histórias, ganhou um sanduíche e minha admiração. Bodrum é um lugar estranho. 

Depois nos dirigimos para onde queríamos estar desde o começo, na região de Fethiye e Ölüdeniz. Para chegar lá foram cerca de 4 horas por estradinhas seguindo a costa turca, uma jornada extremamente agradável. Passamos por cidades minúsculas e belas, pequenas joias escondidas no Mediterrâneo. Foi uma pena termos um prazo de saída da Turquia (pois iríamos encontrar a mãe da Marina na Grécia), porque tenho certeza que dá para ir parando e explorando cada vilazinha à beira do mar. Enfim chegamos no nosso objetivo, um hotelzinho com clima caseiro que ficava na parte mais interiorana de Ölüdeniz. Fethye é uma cidade praiana de tamanho razoável, porém calma e gostosa. Ao seguir pela estrada principal e cortar as montanhas por cerca de 10 minutos é possível encontrar a vila de Ölüdeniz e caso continue na mesma estrada por mais uns 5 minutos chegará na praia de Ölüdeniz, um lugar popular nas férias de quem quer desfrutar o Mediterrâneo turco. Como estávamos de carro ficamos na vila que fica no meio do caminho, e apesar de ser uma região cheia de europeus descansando de suas rotinas, fica também perto de muitas prainhas mais reservadas e escondidas entre os vales que rasgam as montanhas que guardam o litoral daquela parte do mundo. Fomos lá para ficar 3 dias e acabamos ficando 7. Foram tempos relaxantes, daqueles momentos que praticamente fazem um carinho na alma. Todo dia exploramos praias diferentes, nossa hospedagem era ótima e barata, a comida nas redondezas era boa e o melhor, tínhamos café da manhã incluído na diária. E não, isso não é bobagem. Essa viagem me fez valorizar os cafés da manhã inclusos na diária como nunca antes, e o desjejum do nosso simpático hotel era fora de série. Queijos, diferentes tipos de azeitonas, pães, ovo, vários tipos de geleias, bolo e o melhor mel da história. Confesso que comia por duas ou três pessoas ali, o que é a melhor tática a se seguir para pular (e economizar) refeições ao longo do dia. Um homem com um bom café da manhã não quer guerra com ninguém. 

O Butterfly Valley e a praia lá embaixo – bela queda

Nesse período conhecemos praias incríveis, até porque a região era maravilhosa e facilitou nosso trabalho. Mais um lugar na Turquia em que eu ficaria mais de meses, tranquilamente. Uma mistura de montanhas, vales e praias perdidas entre pinheiros. Nunca achei que pinheiro combinasse com praia, mas ali eu entendi que areia branca e coqueiro não é o único combo possível para degustar de uma diversão marítima. Claro, existem lugares lotados e tomados pelas hordas estrangeiras, como a própria praia de Ölüdeniz, mas ali perto fomos em locais como Kabak e o Butterfly Valley, locais lindos e tranquilos. Kabak era o ponto mais afastado de onde estávamos e para chegar lá nos enfiamos no meio de estradas estreitas em um desfiladeiro e quase estacionamos no telhado de um pequeno barraco. Depois descobrimos que para descer até a praia do alto das montanhas (por lá é tudo desfiladeiro até o mar) é preciso pegar um ônibus especial ou andar por um tempo. Como estava quente e estávamos com aquela preguiça gostosa causada pelo excesso de sol e sal, optamos pelo ônibus/van apertado, uma opção sempre interessante para quem quer aliar o clima de praia com uma sauna. Kabak tinha um clima alternativo e místico, com muitos jovens turcos acampando por lá, daquele tipo de lugar em que as pessoas fazem yoga na praia e alguém se oferece para ler seus chakras. É um local lindo, na boca de um valezinho simpático e cercado por montanhas. Um defeito? Mais uma praia de pedra. Mas confesso que senti uma calmaria quase espiritual nas águas de Kabak. Ali pensei, “por que me estressar?” – Tudo estava tranquilo, nossos problemas eram pequenos perto da imensidão daquela natureza e eu estava viajando o mundo com a mulher que eu amo. Claro que esse estado mental zen não persistiu muito e logo na próxima baliza que precisei fazer já estava xingando até minha mãe. Ser iluminado não me cai bem, mas foi bom enquanto durou. 

Parte do rolêzinho para descer até a praia

O Butterfly Valley é um lugar que nem tenho capacidade léxica para descrever. Meu segundo lugar favorito na Turquia toda, com certeza (Capadócia ainda é rainha). Como diz o nome, é um vale, mas não é um vale como muitos outros que existem na região. Ele é estreito, íngreme, quase claustrofóbico. Como se fosse um corte fino nas montanhas feito pela espada de um deus durante a Titanomaquia. E ali embaixo, onde as montanhas finalmente terminam, fica uma prainha linda banhada por águas verdes transparentes. Dá para conhecer o vale pelo alto, a estrada dá a volta por ele e continua pelas montanhas, e a vista é embasbacante. Mas também dá para descer até o mar por uma trilha que beira os penhascos alaranjados. E que trilha. É um caminho quase vertical e que pode ser considerado complicado tecnicamente. Não é longo nem demanda muito esforço, mas deixa tenso. Em alguns momentos é necessário o uso de cordas para descer e subir as pedras. Sim, cordas. Coisa de quem é versado na aventura. Foi nossa versão particular do filme “Limite Vertical” e nós já podemos dizer que flertamos com os perigos da gravidade. Sim, logo eu que já ganhei o prêmio “mais tropeços que a média da população adulta de Itu 2017” consegui completar o nervoso percurso sem nenhum acidente, embora em dado momento eu tive que pular de um penhasco até outro no melhor estilo Missão Impossível. Não acredita? Azar o seu. Não preciso nem dizer que eu adorei descer e subir os precipícios, ainda mais porque fizemos tudo em um lindo dia agraciado pelo sol e eu pude limpar os baldes de suor que saíam de mim em um mar estonteante. Eu já falei da praia do Butterfly Valley, mas vale reforçar, que lugar incrível. Isolada, tem areia (e pedras), mar calmo, cor hipnotizante e um clima tranquilo, quase hippie. A paz de lá só é quebrada nos períodos em que as multidões pulam como pulgas dos navios de passeio que chegam nas ancoragens próximas, mas o caos dessa torre de babel convertida em tripulação só dura algumas horas – as infames “horas de visita”. Nos outros momentos a praia é dos malucos que acampam lá embaixo, de alguns locais e dos imbecis (como nós) que sobem e descem a trilha do desfiladeiro. Lá consegui dar mais um mergulho estilo “zen”. As águas da Turquia fizeram bem pra mim. Só as águas também, porque a trilha foi linda, mas nos deixou incapacitados no dia seguinte. A Marina parecia o cadeirudo (da novela A Indomada, lembra?) andando. O único ponto negativo foi não termos conseguido pegar a temporada de flores e das borboletas que lotam o vale, mas mesmo assim foi um dia de visões inesquecíveis.

Saudades das praias turcas (menos as de pedra)

Não vou detalhar aqui nossas peripécias em todas praias que visitamos, pois até que fomos bem ativos nesses dias baseados em Ölüdeniz, mas apesar das andanças pra lá e pra cá conseguimos relaxar e entrar em sintonia com a sensação de descobrir, algo importante nesse tipo de viagem. Alugar carro não é a opção mais barata e com certeza diminui as chances de encontros inusitados (graças a Deus*), mas em contrapartida aumenta a liberdade para explorar, mesmo que o carro seja um péssimo Peugeot 301 com um motor que mais parece um secador de cabelo. 

Foram alguns dias e logo já precisávamos voltar para Capadócia, devolver nosso carro, pegar um ônibus para Istambul e aí partir para a Bulgária, nosso próximo destino. Mas os detalhes dessa jornada são tema para a próxima newsletter.

Beijos quentes

*Ao contrário de 99% dos viajantes de longa duração, eu não sou grande fã de contato com os outros nem gosto de puxar assunto com qualquer um. Sei que é algo vital para várias coisas, inclusive para o conhecimento de mundo, e reconheço sua importância, assim como reconheço a importância da ingestão de beterraba mesmo odiando beterraba.

Turquia ou derretendo junto com Alexandre o Grande

O castelo de algodão

Olá, guerreiros e guerreiras da paciência. Para os que ainda conseguem arrastar os olhos por essas linhas malditas, premio vocês com uma abertura otimista ao invés daquele costumeiro falatório sombrio e sem sentido que tanto gosto de colocar por aqui. Venho com um simples pensamento que pode mudar tudo para melhor. Alguns chamam de epifania e outros de insight. Eu chamo apenas de sabedoria. Bom, lá vai: alegre-se, o mundo pode estar pegando fogo e nossas vidas escorrendo por entre os dedos gordurosos da opressão, mas pense que em alguma obscura dimensão paralela o Jorge Vercillo é dono de 8 das 10 músicas mais tocadas na rádio. Uma realidade tenebrosa que eu nunca quero conhecer. 

No último relato tínhamos acabado de começar nossa jornada pelos campos dourados da Turquia. Passamos por Konya, tive a orelha incinerada e então continuamos viagem. Rasgamos o antiquíssimo solo turco em direção às ruínas da cidade de Hierápolis e às piscinas termais de Pamukkale.

Esses não são lugares perto de Konya, por isso ficamos umas boas horas na estrada até alcançarmos nosso destino. Gostaria de ter algo a comentar sobre a paisagem, mas achei tudo bem parecido com as grandes estradas que temos no sudeste do Brasil, nada demais. O fato mais relevante dessa viagem foi o nosso carro, que praticamente andou para trás perto dos outros (sim, estou reclamando dele de novo). Calma. Você deve estar pensando que eu sou maluco e é impossível um lugar na Turquia parecer o Brasil, e parece loucura mesmo, mas em muitos momentos achei esse pedaço de terra da Ásia Menor semelhante a nossa antiga Ilha de Vera Cruz. Mas depois passamos por estradas únicas e paisagens incríveis totalmente diferentes do que vemos no nosso país.

O importante é que mesmo as estradas comuns nos levaram ao nosso destino. Chegamos em Denizli, a cidade perto das atrações que eram nosso objetivo, em um fim de tarde chuvoso e quase frio. Arranjamos um hotel bom e barato, daqueles que faz a minha alma transbordar de alegria. Nada melhor do que economizar dinheiro com o mínimo de saneamento básico. A região de Denizli é conhecida pelas águas termais e o destino nos premiou com um hotel que tinha banheiras termais em cada quarto. Admito que sou um entusiasta de banhos de banheira, embora ache eles mais eficientes para o relaxamento do que para a limpeza, então logo quis aproveitar a atração que nos esperava, principalmente porque o dia não fazia questão nenhuma de ser agradável lá fora. 

A água vinha de um buraco suspeito na parede e, como uma boa água termal, tinha um cheiro engraçado. Confesso que a cor não era muito bonita ou convidativa, mas mesmo assim eu estava disposto a me jogar naquele calor líquido e curar todas mazelas da viagem. Olha, e bota calor nisso. Foi um banho gostoso, mas demorou para a banheira ser habitável. A água estava muito quente. Muito quente mesmo. Só faltou o cheiro de enxofre no ar e algum diabrete me cutucando com uma lança para eu me sentir no inferno. Eu odeio banho quente demais, não consigo suportar altas temperaturas e definitivamente não sou um Targaryen. Mesmo assim insisti no mergulho termal e quase fui cozido vivo. As partes mais sensíveis do corpo (você sabe quais são) flertaram com a ideia de perder a pele, mas depois de terminada a experiência me senti revigorado e relaxado ao mesmo tempo.

 Viu, quem disse que não faz bem sofrer. 

Mais um pouco das doideras naturais

Ficamos dois dias por lá e foram dois dias sendo escaldado vivo por vontade própria, tudo pelo bem da saúde. Mas não foi só isso. Visitamos as famosas águas termais de Pamukkale, uma das atrações mais famosas da Turquia. E olha, apesar de não termos pegado todas as cascatas cheias, é um lugar lindo. As termas ficam em uma montanha de calcário branco moldado pelas águas, um espetáculo alvo de formas arredondadas que contrasta com o azul claro do líquido que brota de dentro da terra. Parece até artificial. Ao longo da colina, que ergue-se ao lado de uma pequena vila, existem diversas piscinas naturais em que a água flui formando mini cascatas. Acho que não fomos na melhor época, pois muitas dessas piscinas estavam secas, mas mesmo assim foi bonito de ver. Claro, dá para nadar e se jogar nesse líquido que já foi considerado sagrado, coisa que a Marina fez com mais entusiasmo que eu. Ela e um bom número de turistas com um tamanho duvidoso de sunga. Aliás a Marina estava tão entusiasmada para se banhar que acabou entrando numa parte proibida e protegida, coisa bem de brasileiro que adora levar apitada de guardinha na orelha – claro que ela fez isso sem querer, porque não viu uma plaquinha bem da escondida que dizia “proibido entrar”. Bom, para manter o caráter informativo deste post e mostrar que aqui não se fala só em desgraça e burrada vou dizer que Pamukkale significa “castelo de algodão” em turco, um bom indicativo de como é o lugar visualmente. 

Tava pouco suado o rapaz

O topo da colina branca é habitado pelas ruínas de Hierápolis, uma antiga cidade grega/romana/bizantina/otomana com muita história. Foi nosso primeiro contato com ruínas tão antigas e “ocidentais” (embora estivessemos tecnicamente na Ásia) daquelas bem de livro de história. Claro, já tínhamos passado por lugares anciões, como Varanasi, mas ali a história pulsa mais próxima de nós (para o bem e para o mal). Me senti em um set de filme andando pela necrópolis, pelo templo de Apolo e ao entrar no antigo teatro, que está muito bem conservado. Uma pequena onda de emoção surgiu no meu âmago. Impossível não se sentir oprimido pelo peso histórico de um lugar onde já passaram diferentes tipos de civilizações, imperadores, reis e até um apóstolo, que foi recebido tão bem na cidade que seus moradores resolveram apedrejá-lo até a morte. Nada como a hospitalidade de 2.000 mil anos atrás. 

Acabou a nossa visita a Pamukkale, mas não tinha acabado a veia histórica da nossa jornada. De lá fomos para Selçuk, a cidade que fica próxima às ruínas de Éfeso, o ponto principal nessa nossa caminhada em direção ao passado. Foi uma estadia rápida na região, chegamos de noite, conhecemos as atrações pela manhã e tarde e depois partimos para um outro destino. Foi uma visita apressada, mas foi também uma enxurrada de experiências e muitos anos de história empacotados em poucas horas. 

Éfeso

Importante dizer que lá gastamos mais do que deveríamos. Não ostentamos nas habitações, comida nem nada do tipo, juro que não contratei uma carruagem de ouro para passear pela cidade tal qual um Adriano falsificado, é que é bem caro para entrar nas atrações da região, que não são poucas. 

Nossa primeira parada foi, claro, no complexo principal da antiga Éfeso. Sabe aquela história de avalanche histórica? Pensa em um lugar que já recebeu Alexandre o Grande, Adriano, Marco Aurélio e Cleópatra e o profeta João. Já foi abrigo de uma das sete maravilhas antigas do mundo (o templo de Artémis) e já foi a segunda maior cidade do império romano.Tá bom ou quer mais? Bom, lá ainda conta com complexos islâmicos importantes, antigos fortes e a suposta última casa de Maria (aquela da bíblia). Enfim, eu acho demais pensar que estou pisando no mesmo solo que um dia já foi um lugar cheio de vida, intrigas e putaria. As ruínas são incríveis, mas confesso que achei Hierápolis mais bem restaurada. O grande teatro estava sob reparos e cheio de estruturas metálicas, o mais interessante que aconteceu por lá foi encontrar um chinês cantando ópera para testar a acústica. E olha que ele cantava bem. A biblioteca de Celso é linda, mas é também um grande chamariz de turistas que rondam ela como mariposas rondam uma lâmpada. O resto do local é impressionante e faz a imaginação voar pensando na escala daquilo tudo, mas até eu que sou bem do entusiasmado com essas coisas cansei de ver ruína. Culpa, em (boa) parte do sol impiedoso que pairava sobre nós. Os gregos/romanos foram grandes gênios, mas pensa num povo que não sabe fazer cidade com sombra, faltou essa aula nas escolas antigas de planejamento urbano. Meu deus do céu, quase morremos torrados nas ruínas, eu estava prestes a entrar em uma das antigas tumbas da necrópole só para me jogar no escuro.

A mistura de sol na cabeça, suor nos olhos e enxurrada de turistas estraga qualquer lugar do mundo, por isso logo nosso deslumbramento passou e só queríamos cair fora do passado e voltar para as maravilhas do século 21, mais precisamente para A MARAVILHA chamada ar-condicionado. Mesmo assim fiquei feliz de ter me irritado com o calor no mesmo lugar em que um dia o Alexandre o Grande deve ter reclamado de não conseguir parar de suar no fiofó. 

Ainda na região visitamos uma mesquita famosa, o complexo onde fica a suposta tumba do apóstolo João (que reconhecidamente morou em Éfeso e foi quem levou Maria para lá) e a casa onde Maria ficava escondida, nas montanhas próximas à cidade. Aliás essa foi a atração mais inútil e brochante de ser visitada, pois é longe, cara para acessar e dentro tem apenas uma pequena choupana que não parece ter nem 150 anos. Mais fácil a Maria do Bairro ter morado lá do que a Maria figura histórica/religiosa.

Doidera – Pamukkale

Foi uma visita rápida, mas prazerosa (apesar dos percalços). Eu não sairia feliz da Turquia se não tivesse ido em um sítio arqueológico tão significativo e sei que para a Marina o lugar tem, além do valor histórico, o valor religioso. Valeu a pena o maremoto solar que recebemos. 

E depois desse mergulho relâmpago no passado dirigimos nosso possante para locais mais focados no presente. Era hora de conhecer o litoral turco. E esse é o tópico do próximo post. 

Beijos Quentes

Turquia ou Chegando em Konya com pouca potência

A praça principal da cidade

Olá amantes do obscuro e dançarinos da escuridão, nos encontramos mais uma vez nesse teatro das sombras para celebrar a tristeza que é viver. Estou aqui de novo com uma boia para salvar vossas almas desse oceano de marasmo, das ondas da mediocridade e do abismo da rotina. Oras, acho que é melhor ler isso do que o último e-mail do seu cliente em que ele diz, de forma muito amável, que seu trabalho precisa ser praticamente refeito em poucos horas.

A Capadócia foi uma região especial para nós, um lugar que injetou energia na nossa viagem quando tudo já parecia ser mais do mesmo. Aumentou a vontade de sair e descobrir, algo que acaba-se perdendo com o tempo nesse tipo de jornada. Na verdade não se perde, mas gasta-se, e aí é necessário algum tempo para recuperar essa energia. Quem lançar aos ventos que não se cansa de viajar (por muito tempo) e não precisa encontrar algum buraco escuro para hibernar é mentiroso ou um alienígena, ou os dois. 

Enfim, ainda estávamos por Göreme, de alma esfrangalhada curtindo a paisagem pitoresca e uns bons chás, quando nos tocamos que era necessário entrar em movimento de novo. A Turquia nos esperava. Um dos países mais antigos do mundo ansiava por ser descoberto por nós e por mais uns 500 milhões de turistas. Mas como estávamos em modo de economia energética resolvemos alugar um carro, um pequeno luxo frente aos perrengues do transporte público, que diverte e cansa na mesma medida. 

Para isso fomos até Kayseri, uma cidade a 1 hora de Göreme, onde enfrentamos uma Quimera burocrática para conseguir nosso carro. Não vou detalhar nada, pois seria aqui mais um relato dos chatos obstáculos de papel e caneta que aparecem no percurso, mas vou dizer que o que deveria demorar umas 2 horas acabou demorando quase 5, gerou uma discussão acalorada entre eu, um atendente de telefone que falava pouco inglês e dois turcos do balcão da locadora que não falavam inglês nenhum. Foi a torre de babel do aluguel de carros.

Queriam nos cobrar algo que achei injusto e no fim concordamos em devolver o carro de volta em Kayseri e não em Istambul, o que dificultaria o fim da nossa viagem turca, mas falo mais sobre isso nos próximos relatos. 

Depois de quase sair na mão pela primeira vez na viagem, finalmente embarcamos no nosso possante Peugeot-301. Não é brincadeira não, o carro andava quase no negativo. Foi o primeiro caso de veículo brocha que presenciei. Limpo, arrumadinho, mas fraco. Bom, faz parte, é isso que a busca pela locação mais barata normalmente entrega. O importante é que começamos a cruzar o país em um sedan de tiozão na velocidade da minha falecida tia Gertrude ao volante. E foi incrível. 

A ideia era sair da Anatólia central, bem no meio do país, e seguir para a região do mar, mais precisamente o sudoeste da Turquia. Mas como estávamos longe fizemos algumas paradas interessantes pelo caminho. 

Entrada feminina da Selimiye 

A primeira foi em Konya, uma das cidades mais antigas do mundo, habitada desde cerca de 3.000 AC. Konya é também lar do braço do Islã chamado sufismo, do poeta Rumi e dos dervixes rodopiantes – aqueles rapazes que dançam rodando feito loucos com suas roupas largas e no fim conseguem andar normalmente como se nada tivesse acontecido (eles seriam campeões das finadas olimpíadas do Faustão). Eu não vou comentar sobre cada um desses pontos que acabei de mencionar (faça como eu e dê um Google para aprender mais), mas deu para perceber que Konya é um lugar com uma história incrível. E também um dos locais mais tradicionais da Turquia. A cidade até que é moderna (em termos de estrutura), charmosa e tem bastante jovens pelas ruas, mas lá quase não vimos mulheres sem hijab e eu era provavelmente a única pessoa (fora crianças) usando shorts. Também quase não vimos outros turistas. Mas como somos de fora não sentimos nenhum olhar de repreensão, porém pelo o que li e ouvi por aí as mulheres de lugares mais cosmopolitas, como Istambul e Izmir, não gostam tanto de se enfiar nessa Turquia mais interiorana. 

Ficamos apenas duas noites na cidade, mas foi suficiente e deu para conhecer sua avenida principal que já conta com um número notável de mesquitas incríveis. Tem a colina do Alaaddin (não tem nada a ver com o desenho da Disney, infelizmente) em que fica a mesquita mais antiga da cidade, o centro histórico Mevlana e a mesquita Selimiye, um dos únicos lugares onde senti uma sensação diferente ao entrar, um tipo único de paz transcendental que durou até eu tropeçar em um degrauzinho e quase cair em cima de um jovem que estava orando. Os momentos de iluminação são raros na minha vida. 

Mas os momentos mais legais em Konya foram pequenas porções do nosso dia, como quando tomamos chá da tarde em um café cheio de senhores carrancudos, mas que se mostraram felizes com nossa presença (espero) e quando fui cortar o cabelo em um típico barbeiro turco. O lugar ficava em frente ao nosso hotel e eu estava precisando de uma aparada urgente nas madeixas. O meu cabelo já estava com consciência própria e não mais respeitava minhas tentativas patéticas de penteá-lo com as mãos (não tenho e nunca tive pente), rebelde que é tenho quase certeza que ele também já estava planejando algum ato para desestabilizar a ordem mundial e dominar o planeta. Meu cabelo tem mais ambições que eu.

Resolvi então dar um fim no maldito e entrei nesse lugar simpático onde ninguém falava inglês, como era de costume em Konya. O barbeiro logo entendeu o que eu queria, a Marina mostrou uma foto no celular de como eu esperava o resultado, o barbeiro riu porque deve ter achado que eu jamais ficaria tão bonito quanto o modelo da tela, eu fiquei constrangido e assim, nesse ritmo gostoso, começou o processo do corte. Durante os primeiros minutos as etapas foram as esperadas na ação de modelagem capilar. Mas depois de terminada a parte com tesouras e navalhas algo estranho começou a acontecer. Primeiro o rapaz e seu ajudante praticamente colocaram fogo nas minhas orelhas para queimar pelos e o que estivesse no caminho, depois ele pegou um creme esverdeado e espalhou pelo meu rosto, tal qual uma perua em um day spa qualquer – só faltou colocar pepinos nos meus olhos. Depois eles limparam a famigerada gosma verde e colocaram toalhas em mim junto com um vaporizador maluco e usaram mais um creme esfoliante – foram camadas e mais camadas de reboco nessa reforma inacabada que é minha cara. No fim tive o prazer de ter uma dose de pomada modeladora aplicada nos fios e ganhei uma massagem que beirou um erotismo que eu não estava preparado para experienciar.  Não foi apenas um corte de cabelo, foi uma tempestade de sensações conflitantes em que várias vezes eu quis ir embora mas ao mesmo tempo nunca tinha sido tão bem tratado. Barbeiros turcos são mais carinhosos e acolhedores que colo de mãe.

Dando um tapa no visual

No fim ganhei um belo “dia de princeso” e ainda paguei 4 dólares pelo trâmite todo. Olha, se barbeiros atenciosos estão entre as tradições de Konya eu sou totalmente a favor do conservadorismo, afinal no Brasil por esse valor eu ganharia apenas um corte “tigelinha” e um pedaço a menos da minha orelha.

Quem diria que o momento mais espiritual em uma cidade sagrada seria junto a um turco parrudo com uma navalha perto do meu pescoço.

De visual novo e alma lavada passamos por uma antiga e charmosa vila grega que fica bem perto da cidade e onde comemos, como sempre, mais do que devíamos. O lugar era pitoresco, quase parado no tempo, com aquele charme que só “vilazinhas” conseguem ter. Valeu a enchida no bucho.

Apesar das reclamações quanto ao possante que o universo nos entregou, Konya é um lugar que provavelmente não estaria nos nossos planos caso viajássemos de outra forma, por isso a liberdade automotiva nos rendeu frutos interessantes. Faltou só dar mais cavalos de pau pelas estradas. 

Não tinha muita foto de lá não

Depois da minha peregrinação visual deixamos Konya e fomos em direção a antigas cidades gregas/bizantinas, visitamos ruínas que existem a mais tempo que aquele chocolate na cristaleira da sua avó e quase derretemos sob um sol impiedoso.

Até a próxima.

Beijos Quentes

Turquia ou Capadócia e a maculação da minha alma

Capadócia é um região bem da bacana

Olá, participantes dessa maratona de sofrimentos chamada vida. Aguente firme, chegou mais um episódio das lastimáveis aventuras e patéticas reclamações do menor casal que já viajou o mundo.

No último post contei sobre o nosso rápido e tórrido caso de amor com Istambul. Foi triste e difícil sair de lá, afinal estávamos com tanta preguiça que até comprar um sorvete na esquina configurava-se como “trabalhoso” para nós, mas a vida segue e nossa viagem também seguiu, por isso fomos nos enfiar em mais um ônibus por cerca de 12 horas.

Estávamos indo em direção a Göreme, uma vila quase no centro do que é chamado de Capadócia, que é uma região e não uma cidade, estado ou coisa do tipo. A viagem foi tranquila e sem nenhum grande perrengue, o que de certa forma é uma novidade neste blog. Achei curioso que no ônibus o rapaz que atua como cobrador e ajudante de motorista também se arrisca como comissário de bordo durante a viagem. Sim, em dado momento ele tirou um carrinho dobrável e umas comidinhas de um compartimento secreto e passou servindo chá, água, suco e snacks. Chique. 

Foi um ônibus noturno, por isso no outro dia de manhã chegamos no nosso destino. Ou quase. Como Göreme estava com acomodações muito caras acabamos reservando um lugar em Ürgüp, uma vila próxima (10 quilômetros de distância) e também parte da região da Capadócia. Por isso lá fomos nós caçar uma van local quase que de madrugada para nos levar até nosso objetivo. Locomover-se a baixo custo é cansativo demais, mesmo quando é fácil. 

Família do Mehmet sem o Mehmet – acordamos todo mundo

Depois de algum tempo finalmente chegamos na casa do Mehmet, nosso anfitrião. Em Ürgüp ficamos numa casa de família, mas não foi por Couchsurfing. Na verdade esse lugar estava listado no Airbnb com um preço muito bom, por isso pegamos a oferta. Foi como se tivéssemos alugado um quarto na casa dele. No fim foi uma experiência incrível, mas foi estranho chegar logo cedo na casa de outra pessoa, principalmente porque o Mehmet entendeu errado nossa mensagem e achou que nós chegaríamos à noite, o que nos levou a: 1) acordar ele 2) acordar a família dele toda que estava passando o Ramadã lá (a celebração estava em seus últimos dias) 3) tomar um café da manhã com a família toda, que nós acordamos, sem o Mehmet, porque ele precisou sair correndo para trabalhar. 

Foi uma daquelas cenas surreais que surgem as vezes em obras de realismo fantástico, como se estivéssemos em um filme co-dirigido por Fellini e Roberto Benigni – o casal atordoado, a família confusa, uma criança elétrica e eles sem falarem um pingo de inglês e nós com entendimento zero de turco. Claro que nos entendemos, no fim todo mundo se entende, e um café da manhã com todos tipos de azeitonas possíveis ajudou muito. Aliás eu adorei a concepção de café da manhã dos turcos – alguns tipos de queijo (de cabra principalmente), tomates frescos, pepino, pães diversos, milhares de azeitonas, pistache e nozes, manteiga, frutas e geleias. É farto, gostoso e leve. Quer dizer, se você comer a mesma quantidade que eu comi não é leve não, mas ok. 

Rimos, comemos e (não) nos entendemos, foi interessante. Depois saímos para conhecer Ürgüp enquanto eles arrumavam nosso quarto, pois não nos esperavam aquela hora. 

Um pouco de Ürgüp

A vila é charmosa, arrumada, pequena e da mesma cor de todas as vilas da Capadócia, um bege amarelado que tem o mesmo tom das rochas onde as construções eram escavadas antes. É uma sensação estranha observar uma cidade que tem apenas uma cor, sem um escape de tom, parecia que um gigante tinha jogado um balde de areia em cima de todas construções. De longe os detalhes, que são muitos, parecem se perder em uma massa uniforme, mas ao chegar perto de cada casa ou prédio é sempre possível se surpreender com alguma coisa nova. Aliás a Capadócia e suas vilas são uma visão surreal. Vindo de Göreme para Ürgüp já tínhamos visto uma pitada do que essa região tem para oferecer. Construções escavadas na pedra, cidade fundindo-se com natureza e formações rochosas bizarras. É um lugar incrível.

Pelos vales perdido

Mas melhor do que ficar restrito à vista das cidades ou participar de tours com mais pessoas do que deveriam caber em uma van é se enfiar no meio dos vales esquizofrênicos da região. Sim, dá para andar por conta própria pelas milhares de trilhas que existem ao redor de Urgup, Göreme, Uçhisar e outras vilas da Capadócia. É muito lugar pra desbravar. Nosso dia favorito aconteceu quando nos enfiamos no meio dos caminhos estreitos de alguns vales locais, mais especificamente o Swords Valley, Red Valley e Rose Valley. Foi um dia inteiro andando entre um lugar que parecia o filho renegado da lua com Marte. A diversidade de cenários em espaços tão próximos é fantástica. Em dado momento estávamos no fundo de um mini cânion apertado e cinza, alguns minutos depois subíamos uma colina para nos depararmos com um labirinto de morros rosas que parecia dentes saindo da terra e aí mais adiante nos vimos perdidos entre ferozes formações lunares emergindo como espinhos do chão. Isso tudo apenas nesta pequena região que mencionei. Fora o cenário de cair o queixo ainda nos deparamos com casas e até igrejas escavadas nas pedras, algumas mais antigas que aquele queijo que você deixou no fundo da geladeira jurando que um dia ainda vai comer. É maluco demais pensar em toda história e toda gente que já viveu naquele lugar em condições tão peculiares. Uma das igrejas que encontramos era gigantesca, uma verdadeira catedral dentro de uma rocha.  Ainda bem que eu não nasci em tempos mais antigos, porque o esforço necessário para criar algo desse tipo não condiz com meu nível de comprometimento e energia, se dependesse de mim os moradores da Capadócia não conseguiriam nem enfiar o dedão dentro de um pedregulho. 

Casas nas pedras

Outra coisa que achei incrível é o quão complexo são os cânions e vales que se formam na região. De uma vista panorâmica parece ser uma região árida e simples, incrível, mas simples, com diversos rasgos na terra e umas colinas de formato peculiar se erguendo aqui e ali. Mas ao nos aventurarmos pelas trilhas vimos como cada um desses desfiladeiros escondiam uma vegetação vasta e mais profundidade e beleza do que era possível ver de longe. Nas nossas andanças tivemos que atravessar uma mata espessa lotada de abelhas. Provavelmente era uma trilha fechada que os dois imbecis resolveram seguir e quase terminamos como o menininho do filme “Meu Primeiro Amor”.  Mas o visual que encontramos pelo caminho valeu a pena.

Parecia Marte lá embaixo

Bom, eu me empolguei descrevendo as belezas da Capadócia, mas é porque foi um dos lugares que mais gostei de toda a viagem. É diferente. Impressiona. Caso você passe lá um dia vá além dos passeios de balão e explore o lugar de perto. 

Aliás o dia em que exploramos os vales que mencionei acima foi especial, pois terminamos ele tomando uma cerveja com Mehmet e sua mãe (os únicos moradores fixos da casa onde ficamos) e rindo bastante. A mãe dele é incrível e não fala nada de inglês, mas mesmo assim conseguiu nos mostrar fotos de suas viagens e contar da família. 

Pela Lua

Depois de três dias saímos de Ürgüp e fomos para Göreme, dessa vez ficamos em um hotel mesmo, assim estávamos mais perto das trilhas e vales da região. Göreme também é de onde saem os famosos balões da Capadócia e embora não fôssemos embarcar em um (no caso porque não tínhamos um fígado extra para vender e bancar o voo) queríamos acordar cedo e ver eles subindo aos céus de um mirante nas montanhas do Swords Valley. Para isso teríamos que acordar lá pelas 3 da manhã e andar por 1 hora até a desgraça do mirante. E foi o que fizemos. Infelizmente. Acordamos cedo, enfrentamos um friozinho chato, cruzamos um cemitério turco no meio da escuridão (sem querer), subimos a trilha no escuro, chegamos no topo do morro (onde fica um sofá velho para acomodar os aventureiros) e esperamos. Esperamos. E esperamos. Normalmente os balões começam a subir lá pelas 5 da manhã (nessa época do ano), pois o sol agracia a humanidade com sua presença flamejante umas 5:15. Mas nesse dia nada. Quando deu 5:30 começamos a desconfiar que talvez os voos tivessem sido cancelados. Quando vimos 6:15 no relógio tivemos certeza disso, mas ainda decidimos esperar mais um pouco, nos agarrando a mesma esperança perversa que fazia minha tia Mirtes comprar uma tele-sena toda semana. Em algum momento, perto das 7 da manhã, decidimos voltar para o hotel e para nossas camas, tristes e traumatizados pela falta de balões. O dia até estava bonito, mas eles cancelam os voos lá por qualquer coisinha, acho que tem a ver com alguma bobagem como segurança dos turistas ou algo do tipo. Enfim, ficamos uns sete dias na região e não vimos os balões em nenhum deles, tudo culpa do mau tempo.

Sei lá

Mas, apesar do trauma flutuante, foram tempos gostosos demais na Capadócia. Eu ficaria por lá 1 mês tranquilamente. Fizemos outras trilhas, visitamos o castelo de Uçhisar (que também é escavado nas rochas e fica no ponto mais alto da região), visitamos uma cidade subterrânea, descobrimos cafés escondidos em cantos perdidos dos cânions, tomamos muito chá e ainda relaxamos. Ainda conhecemos um casal de viajantes brasileiros muito gente boa (@livrespelomundo), a conexão foi instantânea e poderosa, apesar de apenas um dia juntos. Foi demais.

Esse morrão de pedra é o castelo de Uçhisar – era usado como um castelo mesmo
Foto seguidinha porque esse lugar era muito legal – mais casas na pedra perdidas por aí

Ou quase, pois foi lá que também aconteceu o maior trauma recente da minha vida adulta. Foi onde perdi a dignidade. Foi onde minha alma foi maculada e todo respeito usurpado do meu coração. Não sou mais o mesmo Rafael desde então, e, apesar de nunca ter sido grande coisa, ouso dizer que agora sou um homem pior do que era. Vou explicar o que aconteceu. Em uma tarde preguiçosa resolvemos tomar um sorvete. A Turquia é cheia de sorveteiros “brincalhões”, que ficam fazendo truques com a casquinha e “enganando” os turistas. Você já deve ter visto um vídeo disso, é praticamente uma atração turística por lá e as crianças adoram. Coisa que não me interessa, credo, longe de mim. Sou tão reprimido em alguns sentidos que ser feito de bobo pelo rapaz do sorvete na frente dos outros ativa uma vergonha poderosa e primitiva no meu âmago. Ou seja, eu nunca escolheria em sã consciência tomar um sorvete num lugar desses. Enfim, estávamos andando por Göreme atrás do nossa delícia gelada e achamos um lugar “normal”, não era desses cheios de truques. Ou pelo menos eu achava que não era. O rapaz do balcão serviu a Marina e, na minha vez, vi que um riso malicioso surgiu no canto da sua boca. Ele pegou o sabor escolhido colocou na casquinha e na hora de me entregar virou a casquinha de ponta cabeça e eu quase enfiei a mão no sorvete. Nessa hora meu cérebro deu uma pane, eu cheguei a pensar “meu deus, será que isso vai acontecer?”, mas já era tarde demais, o sorveteiro maligno, num golpe ágil e cruel, recolheu o braço e estocou com firmeza, enfiando o sorvete no meu nariz. Isso mesmo, eu, um homem adulto, levei uma sorvetada no nariz. Uma sorvetada no nariz do nada, no meio da praça da cidade. Meu mundo acabou naquele momento. Minha dignidade saiu correndo e eu fiquei com cara de bobo enquanto aquele turco dos infernos me observava morrer por dentro. Quando recobrei a consciência resmunguei em português, limpei o rosto cheio de sorvete de melão e sai sem nem olhar para trás. Mas o estrago já tinha sido feito, eu nunca mais seria o mesmo. 

Fica aí o aviso, quando você se leva a sério demais esse tipo de coisa pode acontecer. A minha rigidez interna foi estraçalhada por um sorveteiro e até agora estou recolhendo os cacos. 

E foi essa a única marca negra que a Capadócia me deixou.

eita

Após isso me reneguei, jurei vingança contra todos sorveteiros engraçadinhos, alugamos um carro e saímos para explorar a Turquia. Mas isso é o tema da próximo post.. 

Beijos quentes