China 3 ou o Capítulo da Xangai Escatológica

Esse relato cobre os eventos de 10/09/2018 a 13/09/2018.

Eu fiquei em dúvida se deveria escrever um post dedicado apenas a Xangai (vou escrever com X mesmo). Não aconteceu muita coisa na nossa estadia de três dias por lá. Quer dizer, não aconteceu muita coisa no sentido de conhecer/explorar lugares novos, mas eu garanto que meu corpo estava em atividade intensa. Isso mesmo, apertem os cintos e tirem as crianças da sala, o episódio de hoje será escatológico (e prometo que a partir daqui esse tema quase não aparecerá mais nos textos).

O leitor de boa memória se lembrará do episódio da montanha da discórdia, em Xian, onde excedemos nossas capacidades físicas. Pois bem, logo na madrugada do dia seguinte já pegamos um trem para Xangai, então imagine nosso estado físico ao chegar lá.

Para resumir bem: nossa estadia em Xangai foi oh, show de bola.

Ela foi marcada por uma diarreia poderosa e uma dor física que me fez sentir como o meu falecido avô deve ter se sentido quando quebrou o fêmur já nos últimos anos de sua vida. E fora que o ponto alto de emoção desses incríveis três dias foi visitar (ou melhor, caçar) um hospital chinês.

Enfim, graças a minha “condição” não fizemos nada demais, pois mal conseguia sair. Ficamos em uma área bem turística perto do rio (o Bund) e só posso falar que Xangai a noite é bacana, ou parece ser, algum dia vocês podem visitar a cidade e me contar.

Xangai parece legal 1

Mas ai você pode pensar “dor de barriga é tranquilo pô, não precisa fazer esse drama ai”. Sim, verdade. Até certo ponto, pois a que me afligia era daquele estilo “nada vai ficar aí dentro”, e durou uns três dias. E tem mais, essa aventura intestinal tinha um outro grande ponto de tensão – no nosso último dia lá eu ainda estava passando bem mal e sabia que em pouco tempo pegaríamos um trem de 22 horas, na terceira classe, para chegar até outra cidade. Deixa eu repetir: 22 horas, quase 24 horas (que são um dia inteiro), em um lugar fechado, cheio de pessoas e sacolejante, com as tripas escorrendo por certo orifício. E o banheiro do trem não é o melhor lugar do mundo para sentir que sua alma está escapando do seu corpo pelo ânus. Sem falar que pegar trem envolve todo um trâmite logístico que requer tempo e paciência, coisa que alguém que não está conseguindo ficar 30 minutos longe do banheiro não tem.

Xangai parece legal 2

Durante aquele meio dia que tinha até embarcar na locomotiva da morte eu me senti no seriado “24 horas”. Sabe quando o tempo que falta para algo ruim acontecer pisca na tela com um efeito sonoro? “5:30 até os terroristas castrarem o cônsul”. Então, cada minuto que passava (e eu ainda estava mal) era acompanhado desse efeito visual *vintequatrohoristico* na minha mente. Só que no caso do Jack Bauer o “algo ruim” era o presidente morrer ou algum lugar explodir, e ele podia atirar em todo mundo para resolver os seus problemas. No meu caso o “algo ruim” envolveria muita vergonha em um possível episódio de “defequei em público” e o pior, a única coisa que eu podia fazer a respeito era comer algumas maçãs e beber muita água.

Por isso a Marina resolveu tomar o protagonismo desse filme de terror que se desenhava e me convenceu a caçar um hospital. Primeiro fomos em um lugar que nosso seguro de viagem indicou e estando em Xangai, uma cidade bem cosmopolita, eu estava tranquilo em relação a comunicação. Ledo engano, pois chegando lá descobrimos que ninguém entendia a gente. Nem a porcaria do tradutor. Por sorte um senhor muito simpático, que era paciente do hospital, resolveu nos ajudar e atuou como intérprete, mesmo que o inglês dele não fosse dos melhores. Após uma discussão, que pareceu fervorosa, com um dos médicos, ele nos disse que eles não tratavam daquilo naquele hospital. Achei estranho, afinal quem não trata uma diarreia? Mas após visitar um segundo hospital e receber a mesma resposta na cara, percebi que: ou não existe conceito de clínico geral na China e os hospitais são bem especializados ou nós estávamos nos comunicando de forma muito errada.

Não deixe o andar sereno te enganar, esse homem estava nervoso pra caramba

O resultado disso foi que andamos um bom tempo na chuva (e eu nem preciso lembrar vocês da minha situação) igual umas baratas tontas por partes nada bonitas da cidade.

No fim achamos um hospital bem grande em que conseguimos nos entender e entrar nas engrenagens do sistema de saúde chinês. É confuso, mas funciona. Tem um guichê no lobby do hospital que você precisa visitar para pagar por tudo que quer fazer, por exemplo: para fazer uma consulta você paga antes e depois sobe até o andar do médico e espera sua vez, aí se o médico pede exames você volta para o guichê, paga, e aí vai fazer os exames, se depois precisar comprar remédios é a mesma coisa.

Esperando a consulta

E foi exatamente por isso que passamos, mas no fim foi tudo até que rápido e eu completei todo o processo no hospital mesmo – fui ao médico, fiz o exame de sangue menos higiênico da minha vida, o resultado saiu rápido e já passei para outra consulta. No fim comprei os remédios indicados e corremos para a estação de trem.

Conseguimos chegar a tempo, os remédios fizeram efeito e eu não passei mal durante a viagem sobre trilhos. Não passei mal, mas passei fome, pois só estava comendo uma maçã por dia ainda.

O tal do exame de sangue

Foram uns dias bem ruins, mas já que eu não conseguia fazer quase nada, pelo menos assistimos Missão Impossível no cinema ao lado do hotel. Foi a primeira vez que fomos ao cinema na viagem. Tudo tem um lado bom.

Antes de me despedir gostaria de falar sobre um fenômeno chinês que já tinha visto na internet, mas que foram bacanas de presenciar ao vivo. Principalmente em Pequim e Xangai.

O mercado chinês tem fama de produzir cópias, certo? Mesmo que a cópia seja tão ruim que não parece em nada a coisa original (os famosos bootlegs). Então, aqui você encontra a galera na rua com umas roupas sensacionais (sei que não é só com roupa que acontece), já vi marcas como:

– Diordio Armani

– Girgio Armanu

– Givencho Paris

– Givenchy ParLs

– Yvo Saint Lauren

– Suprem

– Superme

– Supren

– E qualquer coisa que pareça o logo da Supreme. Os caras amam essa marca e tem uns vestuários em que nem parece que tá escrito Supreme. Sério, se alguém colocar CARAPICUÍBA em um retângulo vermelho numa camiseta branca vai vender igual água na China.

O legal sobre essas cópias bizarras é que vi tanto em bairros mais pobres quanto em locais mais nobres, ou seja, a falsificação não conhece barreiras sociais por aqui.

Não que eu ligue pra marca que o pessoal tá vestindo na rua, afinal eu ando com a mesma camiseta três dias seguidos e tenho apenas dois shorts, mas achei uma informação divertida de se compartilhar. Caso você tenha achado essa parte do texto uma perda de tempo pode ligar para meu celular e registrar sua queixa.

E é com essa frase mal criada que me despeço de vocês.

O próximo capítulo é sobre o maravilhoso parque de Zhangjiajie e uma de nossas maiores aventuras da viagem.

Beijos quentes

SE INSCREVE AQUI QUE DÁ TRABALHO

Publicidade

China 2 ou o Capítulo da Montanha da Discórdia

Nesse relato eu exagerei. Basta ver o quanto eu escrevi sobre apenas nossos 3 dias em Xian. Ok, o relato cobre pouco temporalmente, mas muitos fatos aconteceram nesse período, por isso o texto extenso. Enfim, o relato cobre os eventos de 07/09/2018 a 10/09/2018.

Olá seres pensantes que acompanham essa newsletter/blog. Surjo mais uma vez do meu covil no abismo para alegrar a semana de vocês. Espero.

Na verdade não estou nos meus melhores dias para escrever essa “enrolação” que faço antes de cada capítulo, então vai isso mesmo.

E segue o relato.

Partimos de Pequim para o nosso próximo destino, a incrível cidade murada de Xian. Antes de chegar lá tivemos a nossa primeira experiência da vida com trens bala. Vou ser sincero, não sei exatamente se era um trem bala, mas que era um trem bem rápido, a isso era. Foi uma experiência bem positiva, tudo fácil de achar, de embarcar e a viagem foi ótima. Cobrimos cerca de 1000 km em umas 5 horas, com o trem indo entre 250 a 300 km/h.

Olha, os “trens bala” da China estão de parabéns, deu vontade de usar eles pelo resto de toda viagem. Mas aí nós descobrimos que estávamos pagando caro pra caramba e foi esse o fim de nossa história. Adeus transporte de extrema velocidade e conforto.

E assim chegamos em Xian, que é uma baita cidade legal, diga-se de passagem. Carrega uma carga histórica pesadíssima, afinal tem mais de 3 mil anos e foi capital da China por muito tempo. Antiquíssima, ainda preserva parte de sua história até hoje, como os muros de pedra que correm por parte da cidade. Também é uma metrópole, com estrutura, força cultural e algumas peculiaridades. Desculpe, não vou me conter e vou cair no clichê: Xian é um belo exemplo de harmonia entre o passado e o presente. Gostamos bastante de lá, apesar do pouco tempo de estadia.

Uma dessas já mencionadas peculiaridades da cidade é seu bairro muçulmano e o mercado que existe por lá. Isso mesmo, Xian tem um bairro muçulmano que remete a tempos da Rota da Seda, quando a cidade era um dos extremos da famosa linha comercial. Comerciantes muçulmanos, já percebendo o potencial do mercado chinês, chegaram até Xian e ali ficaram, dando início a influência que até hoje perdura em partes da cidade. Achei esse fato muito incrível e inesperado (só descobri que o bairro existia quando cheguei lá), mas eu também sou o tipo de pessoa que fica duas horas observando um cachorro dormir, ou seja, posso achar qualquer coisa incrível.

E digo mais, esse mercado que visitamos era O mercado. A mistura perfeita entre comidas de rua, aromas estranhos, buzinas, gritos e pessoas. Um vórtex de caos, cheiros, sons e suor humano. Talvez eu esteja fazendo parecer como algo ruim, mas apesar de toda bagunça é um lugar incrível. Ele é sim muito cheio, tanto de gente quanto de motos. Ele é sim muito barulhento. Ele com certeza abriga uns cheiros pouco ortodoxos. Mas a comida é, no geral, boa, e a sensação de andar por um lugar tão vivo e pulsante é incrível. Sabe quando em um filme de aventura o personagem principal chega no bazar de alguma cidade distante e exótica? Em que tudo chama a atenção e é capaz de gerar maravilhamento? Então, nossa visita noturna ao bairro muçulmano foi mais ou menos assim.

Marina em um momento de paz no meio do caos do mercado
O bairro muçulmano

Porém tenho que ser justo e dizer que foi lá também que tive uma das maiores decepções da viagem. Avistei de longe um doce que parecia ser muito popular, pois sempre tinha alguém comendo/comprando. Era um disco grosso e amarelado, que pela aparência me lembrou o meu amado quindim. Passei por diversas barraquinhas que serviam o famigerado alimento e sempre falava pra Marina “ei, será que é quindim?”. Certa hora, cansada das minhas indagações vazias, ela disse pra eu deixar de ser covarde e descobrir. Eu fui. Mas o problema é que eu fui com muita certeza que era quindim. Todos clientes saiam tão felizes e completos após a compra do doce que só poderia ser quindim, certo? Ou até mesmo algo melhor! Talvez toda essa troca de cultura gerada pela Rota da Seda tenha trazido o quindim pra China.

Bom, segui com minha jornada, comprei meu pedaço e como um homem prestes a conquistar o mundo dei uma baita mordida no meu pseudo quindim.

Meu deus, quanta decepção.

Senti o equivalente a uma apunhalada nas costas, uma traição gustativa sem precedentes. O doce era extremamente frio, com uma consistência estranha e sem gosto. Acho que eu preferiria um gosto muito ruim do que aquele vazio que estava na minha boca, um vazio que logo se transferiu para minha alma. O meu amado “quindim” era na verdade uma massa sem graça de arroz que se alguém vier me dizer que é bom vai arranjar um inimigo para vida.

Quiçá a maior tristeza da viagem até agora.

O famigerado pseudo quindim. Vendo a foto agora vejo que nem parece um quindim, mas na hora parecia sim.

Xian também é a cidade dos guerreiros de terra cota, o exército construído para acompanhar e proteger a jornada espiritual do imperador Qin, o primeiro da China.

Foi muito interessante conhecer o complexo da tumba do imperador, acompanhar as escavações (existe trabalho arqueológico sendo feito até hoje por lá) e ver de perto os famosos guerreiros. São tantos (milhares) e com tantos detalhes. Existem os generais, os cavaleiros, os arqueiros e os coitados, aqueles em que dá para perceber a falta de esmero dos artesãos. Acho que esse último grupo foi feito quando o prazo já estava chegando ao fim e aí foi melhor entregar uns mais mal acabados do que não entregar nada. Não julgo os artesãos, afinal já estive na faculdade e sei como é essa situação.

A galera 1

Foi um passeio incrível e recomendo muito para quem gosta de história. Ler sobre as escavações, sobre como tudo foi descoberto sem querer por agricultores e entender o baita processo de “remontagem” que os arqueólogos fazem foi bem interessante, afinal a descoberta desses guerreiros é o mais importante fato arqueológico dos últimos 50 anos.

A galera 2

E pensar que eu perdi a excursão da escola quando os guerreiros foram expostos em São Paulo (acho que fiquei jogando vídeo game ou algo do tipo), então chupa vida. Agora tive a oportunidade de vê-los no seu próprio cantinho especial.

E no nosso último dia em Xian resolvemos ir para um local um pouco afastado da cidade para percorrer as trilhas do Monte Huashan, uma das cinco montanhas sagradas da China. Deveria ser uma das montanhas malditas da China, isso sim, pois esse morro glamourizado quase acabou com a minha vida e meu casamento (posso estar exagerando um pouco aqui).

Antes de continuarmos um aviso: lembra que eu disse que já na China, mesmo cansados estávamos em um ritmo acelerado ao visitar coisas e lugares, levando nossos corpos e mentes ao limite? Então, essa informação é importante pois foi exatamente no topo da montanha que transbordamos esse limite e a coisa ficou feia.

O monte Huashan tem diversos picos, cinco para ser exato, e a maioria das trilhas ficam já no “topo” da montanha. Ele também já foi conhecido como um dos locais mais perigosos de se fazer trekking no mundo, mas hoje isso mudou e caminhos pavimentados e escadas se espalham em quase todas direções. Ainda existe uma parte da trilha que você faz pela lateral da montanha, andando apenas em umas tábuas de madeira e é aterrorizante (clique no link para entender).

Parte da trilha do terror. Repare nas pessoas no canto inferior esquerdo.

Nós ficamos na fila para percorrer esse caminho, mas (felizmente) estava muito cheio e não daria tempo de descer a montanha se esperássemos mais tempo. Mas só para resumir, Huashan já foi um lugar muito perigoso, hoje ainda é um pouco, pois alguns dos caminhos são bem íngremes, e é um local com escadas que te desafiam fisicamente. É um local com escadas que desfiam a lógica e a física. É um local com muitas escadas. É tanto degrau que dá vontade de se jogar lá de cima.

Não parece, mas era bem íngreme. As correntes de apoio não estavam lá de brincadeira

Estou só criando um contexto para falar que: conhecer todos os picos sem ajuda de algum facilitador, como teleférico ou bondinho, é bem desgastante.

Nosso plano inicial era fazer a montanha toda sem ajuda desses “facilitadores”, afinal somos aventureiros. E essas engenhocas são caras de usar. Na verdade o real motivo foi o valor mesmo, eu queria economizar uma grana. Para que pagar alguns dólares se você pode subir mais de 4 mil degraus sozinho? Bobagem. Mas como encontramos outro grupo de gringos na fila do ticket de entrada (talvez os únicos que vimos por lá) e eles disseram que andaríamos muito no topo da montanha e que seria melhor subir com alguma ajuda, mudamos de ideia. Eu fui meio cético, mas a Marina se convenceu, essa santa em forma de mulher, ainda bem por isso, pois senão nós não estaríamos mais nesse planeta.

Subir até o “quase cume” foi uma jornada magnífica. O caminho do teleférico é bem bonito e até aí o dia estava indo bem. Chegar lá em cima foi incrível também. O lugar é lindo e é fácil entender porque é considerada uma montanha sagrada. Nós chegamos em praticamente três dos cinco cumes possíveis, e a vista era sempre espetacular. Além da vista, toda a aura da montanha é algo de outro planeta, principalmente nas rotas e picos menos cheios. Ali a gente andava, andava, andava. Subíamos e descíamos escadas e do nada nos deparávamos com algum monastério mais antigo que aquele vinho que a sua avó guarda para “ocasiões especiais”. Como o monastério foi parar ali não sei.

Cenas do Huashan
Cenas do Huashan
Esse lugar era bem bonito

Bom, como eu disse, em alguns momentos a trilha assumia uma aura quase espiritual, um ar de mistério e encantamento se aliavam a uma paisagem tomada por rochas de aspecto violento e um horizonte infinito. Já em outros momentos tinham mais de cem pessoas atoladas no pequeno espaço de uma das trilhas, enfiando braços e cotovelos nos nossos olhos e nosso único desejo era jogar alguém dali de cima. Coisas de China.

E falando em jogar outras pessoas da montanha…

Eu já mencionei que nosso cansaço estava chegando no limite e que as trilhas do Huashan eram desgastantes, uma combinação explosiva. Ambos atingimos um patamar de irritação nunca visto antes (e nem depois) nos anais de nossa viagem. Foi uma lavagem de roupa suja de duração extrema, quase o ”Iron Man” das DRs, tanto pela duração quanto pelo desgaste físico que estávamos tendo ao falar e andar. Quando tudo parecia resolvido um mero espirro causava uma nova discussão. Senti no olhar a vontade furiosa da Marina de me empurrar de lá de cima algumas vezes. Certa hora ela até me ofereceu para uma família chinesa, que educadamente me recusou como um novo membro. Foi esbravejo pra lá e esbravejo pra cá, até que enfim, quase com as luzes crepusculares indo embora, nosso real entendimento apareceu. E aí tudo estava bem de novo. Ou quase.

Lembra que eu disse que eram mais de 4 mil degraus para subir? Bom, nosso plano era descer tudo a pé, pois pelo o que lembro nem dinheiro para o teleférico tínhamos. Isso depois de perambular o dia inteiro por trilhas recheadas de escadas e caminhos íngremes. Nossa cota de degraus havia sido atingida faz tempo, mas mesmo assim não tinha o que fazer, precisaríamos enfrentar mais uns milhares deles para chegar à base. Então lá fomos nós.

Mais escada para vocês lembrarem que a gente enfrentou um monte delas

Pegamos um caminho praticamente sem ninguém e as poucas pessoas que cruzavam com a gente estava subindo a trilha, o que me fez questionar até onde a rota nos levaria, mais um ponto de estresse para minha mente “noiada”. Também era um caminho com escadas em ângulo de quase 90 graus. Era mais fácil pular e se esborrachar no chão do que descer algumas delas.

Outro ponto importante, já era fim do dia e ainda tínhamos que andar alguns bons quilômetros, alguns deles na vertical, para chegar a tempo de pegar o último ônibus para Xian, que partia às 19 horas. Ou seja, era uma corrida contra o tempo.

Pelo menos o caminho era bonito

Após muitos tropeções, surtos de desespero (meus) e as nossas pernas quase desistirem de funcionar, conseguimos! Chegamos ao fim da trilha acabados, destruídos, verdadeiros farrapos humanos se arrastando. Mas claro que o martírio ainda não tinha acabado, afinal era necessário achar da onde o ônibus partiria, pois saímos por um portão diferente do que entramos. Após algumas perguntas desesperadas para pedestres que nos olhavam com estranheza, um guarda resolveu nos ajudar e apontou o caminho. Foi aí que o avistamos, de longe, ele, a nossa salvação em forma de aço, borracha e combustível fóssil. O medo que o ônibus partisse tomou conta de nossos corações e, ao olharmos um para o outro sabíamos, seria necessário correr. Disparamos pela ruazinha da cidade e na minha cabeça estava tocando o tema de “Carruagens de Fogo” ao fundo, uma cena bonita em que desafiamos nossos limites e chegamos até o destino. A realidade deve ter sido bem menos glamurosa e talvez mais visceral, algo mais ou menos como dois porquinhos da índia pernetas correndo pela rua. Praticamente dois zumbis brasileiros aterrorizando uma pequena cidadezinha chinesa.

Não sei como cheguei, mas cheguei. Acabado, mas cheguei. E assim conseguimos voltar pra Xian.

Ainda bem que tudo deu certo, pois tínhamos que pegar um trem no dia seguinte cedo para Xangai, onde enfrentamos as consequências dos nossos atos no monte Huashan. Basicamente ficamos sem andar por alguns dias e eu passei bem mal.

Mas para saber mais sobre isso só lendo o próximo relato.

No fim a bela montanha da discórdia foi muito importante para um ajuste no nosso “relacionamento de viagem”. Ali, após muito suor e brigas, acertamos verdadeiramente nosso compasso como casal e nada do mesmo tipo se repetiu. Obrigado, montanha maldita.

Pensa num dia foda

E uma última informação para os curiosos, nesse dia nós andamos mais de 30 km e subimos e descemos mais de 6 mil degraus. É isso.

Beijos quentes

INSCREVA-SE NA MELHOR NEWSLETTER EM QUE EU ESCREVO

Ferrovia Transiberiana ou o capítulo do lencinho umedecido

Esse post cobre os eventos de 17/08/2018 a 27/08/2018 (acho)

O leitor mais fiel ou mais atento deve se lembrar de como comentei o quanto trens seriam importantes para nossa estadia na Rússia. Ora, isso porque o grande plano nesse país gigante era justamente cruzá-lo de trem, como intrépidos desbravadores indo em direção ao misterioso oriente em cavalos feitos de fogo e aço. Aventureiros a bordo do peculiar. Caçadores de emoção se jogando no desconhecido. Ou melhor (e mais verdadeiro), dois desanuviados viajando tranquilamente com milhares de famílias russas.

E já que estou em um raro momento de sinceridade, tecnicamente o nosso plano (e o que acabamos fazendo) era usar a rota trans-mongoliana e não a Transiberiana de cabo a rabo, afinal não fomos até Vladivostok (do outro lado do país) e sim desviamos o trajeto para Ulan Bator, na Mongólia.

Foi sensacional de qualquer jeito.

Nossa jornada começou logo após a corrida contra o tempo em São Petesburgo, em que pegamos nosso trem faltando 5 minutos para ele partir (e lá eles são pontuais). Após achar nosso vagão embarcamos cansados, suados e duas ótimas representações do que são seres humanos sem condicionamento físico. Cambaleamos até nossos lugares e quase morremos para colocar nossas mochilas no local adequado, acima de nossas camas, que eram ambas a parte de cima do beliche.

Para os que não lembram da confusa descrição que dei dos trens da terceira classe no post anterior, nesses vagões não existem cabines fechadas, apenas dois beliches em uma espécie de “cabine aberta” e um outro beliche enfiado num canto triste do corredor. Ou seja, todo mundo vê todo mundo a todo o momento (mesmo nos mais íntimos). Refeições acontecem em uma mesinha comunitária que fica entre os dois beliches. Para quem fica no corredor a cama debaixo “vira” uma dessas mesinhas. Vou colocar uma foto e tudo ficará mais claro (espero).

“Cabine” da terceira classe
Beliches do corredor

Claro que quem está nas camas inferiores tem mais controle sobre o terreno da alimentação, afinal a mesa está ali a poucos centímetros de alcance, por isso, e pela comodidade de não ficar escalando toda hora, os locais inferiores esgotam mais rápido nos trens. Mas é aí que entra a etiqueta da locomotiva, que fomos aprendendo aos poucos, em que é aceitável que as pessoas do beliche de cima fiquem sentados, como em sofás, nas camas inferiores, pois elas precisam usar a mesa em algum momento e, por mais que essa seja uma afirmação contra intuitiva, se enchem o saco de ficarem deitadas o tempo todo (mal da pra sentar nos lugares de cima).

Agora você já sabe, se algum dia estiver em um trem russo e acordar com alguém te chutando muito provavelmente essa pessoa quer usar a mesa que você está bloqueando com seu corpinho. Na verdade não é tão diferente assim da dinâmica de qualquer trem leito compartilhado, mas para nós era novidade.

Marina curtindo a disputada mesinha

Estávamos indo para Kazan, que fica a 22 horas de São Petesburgo. Lá faríamos uma de nossas paradas pelo trajeto.

Ficaríamos dois dias em Kazan e depois partiríamos para Irkutsk (sendo esse o maior trajeto da nossa jornada) e de Irkutsk pegaríamos mais um trem até a Mongólia, mais precisamente Ulan Bator. Fizemos tudo isso mesmo e no fim contabilizamos 5 dias (não seguidos) dentro do trem. Haja livro e Netflix.

Fato importante que ainda não mencionei, você compra os tickets “por perna” e não uma passagem só para Transiberiana toda. Quer dizer, você pode ir direto de Moscou a Vladivostok, mas se prepare para ficar muitos dias seguidos no trem. Caso queira parar pelo trajeto é preciso comprar varias passagens diferentes. Para Kazan já tínhamos comprado o bilhete em Moscou, quando a senhora eficiente mas nem-tão-simpática-assim nos ajudou.

Voltando ao relato – Isso tudo quer dizer que tínhamos longas horas de trem a serem enfrentadas com corpos suados e desgraçados fisicamente. Felizmente nossos companheiros de “cabine” nos ajudaram a ajeitar nossas coisas e depois conseguimos nos limpar com o maior amigo desse tipo de viagem, o lencinho umedecido. Claro que nesses trens não tem chuveiro, muito menos na terceira classe onde o banheiro parece uma armadilha prestes a te jogar nos trilhos, por isso a higiene a base da umidade desses produtos para bumbum de neném é essencial.

“Limpos” e mais tranquilos finalmente conseguimos interagir com nosso colegas, pai e filho vindos do Tajiquistão e que tinham ido visitar parentes na Rússia. O pai não falava inglês e o filho, adolescente, tinha um sotaque bem carregado, como se alguém do Casseta e Planeta estivesse interpretando alguém do Tajiquistão falando inglês. Mesmo assim conseguimos conversar, dar algumas gargalhadas e ainda sobrou tempo pra ficar com inveja deles, pois no momento de comer só tínhamos miojo (os vagões tem água quente de graça. Por isso muita gente leva miojo e chá para essas viagens e deixa de pagar uma fortuna na comida suspeita do vagão restaurante) e a dupla fez surgir, do nada, um tupperware gigante com as mais variadas comidas do seu país natal. Cordeiro, frango, batatas e pães caseiros, tinha muita coisa. Eles eram verdadeiros invocadores de comida e aparentemente fizeram um banquete apenas para ter o que comer no trem e ainda levaram tudo no melhor estilo “marmita”. E a gente ali, com algumas Oreos e um miojo sem vergonha. Tristeza.

Entre mordidas e risadas no estilo “estou rindo pois não entendi nada do que você disse” descobrimos que a dupla não gostava muito dos Russos e que aparentemente o Tajiquistão é tranquilo de conhecer. Realmente parece um país incrível, mas depois descobrimos que pouco antes uns viajantes tinham sido mortos num aparente ataque terrorista por lá, então não sei o quão tranquilo o lugar realmente é (lembrando que sou completamente ignorante sobre o Tajiquistão e isso pode ter sido um incidente isolado).

Fora essa interação o que fizemos no trem foi: dormir, ler, escutar música e admirar a paisagem até chegar ao nosso destino.

Para ser sincero essa foi a tônica de todas nossas outras viagens de trem pela Rússia. No começo todos se olham como suspeitos, mas logo uma cumplicidade (que não é necessariamente amizade), se forma. Foi assim com uma senhora e seu neto até Irkutsk e com um coreano figura até a Mongólia.

Visões da Sibéria 1

Sabe aquela história, que comentei lá em São Petesburgo, sobre o trem ser uma explosão de odores? É muito verdadeiro. Os russos viajavam em família, e as famílias levam seus próprios “banquetes” para a jornada. Tem sopa, tem cozido, tem pão, tem coisa estranha pra passar no pão e tem umas coisas mais peculiares, como uma turma que comprou um peixe cru em uma das paradas e começou a corta-lo e comê-lo ali na hora mesmo, tipo um sushi depressivo. Fora as comidas vale lembrar que são vagões apinhados de gente, gente com necessidades fisiologicas e que não tomam um banho decente há a algum tempo. Nossa viagem de Kazan a Irkutsk, por exemplo, foi bizarramente longa, ficamos mais de 48 horas seguidas enfiados no trem, e aí que volta nosso herói lencinho umedecido, salvando os últimos vestígios de higiene que temos nesses lugares. Acontece que nem todo mundo é adepto desse tecido mágico, e aí o bicho começa a pegar. Enfim, os vagões da terceira classe são uma definição clássica de “farofada”, mas é uma farofada boa, bem mais acessível do que esperávamos e o melhor de tudo, é uma farofada pontual.

O famigerado “peixão cru”

Foi uma experiência incrível, pois foi nosso primeiro contato “hard” com os locais de um país. Era fim de verão e vimos as famílias russas voltando para suas casas após as férias. Encontramos estrangeiros apenas na única vez em que visitamos o vagão restaurante, e era uma turma bem de nariz em pé, então fiquei feliz de ter ficado só com os russos de cueca lá da terceira classe.

Uma coisa que perdemos completamente nesses trens, além da privacidade, é a noção de tempo, principalmente durante as pernas mais longas. Dias viram noites e noites viram dias e tudo parece apenas um sonho febril. O nosso querido Einstein devia estar em um trem desses quando disse que o tempo era relativo, pois eu tive a impressão de ter passados algumas vidas ali dentro, e ao mesmo tempo foi tudo apenas um instante. Essa sensação só piora se como nós, você pegar um trem velho e quente. Pra ser sincero demos sorte a maior parte do trajeto, pegando trens “novos” e bons, mas justo no momento em que mais ficamos tempo seguido sobre trilhos o nosso vagão parecia um forno com tecnologia da era dos czares. Quase morri sufocado ali dentro, nunca achei que fosse suar tanto durante uma noite na Sibéria.

Esse foi o famoso “forno nos trilhos”

Aliás pegamos um resto de verão bem potente durante quase todo percurso, foi estranho acompanhar as paisagens “com vida” que passavam pela janela. Eu esperava ver aquela Sibéria melancólica, desbotada e reflexiva, quase como os cenários de um filme do Tarkovsky. Ao contrário, pegamos bastante sol e muito verde, mas ainda era a Sibéria. Casas de madeira naquele estilo único que não sei descrever (veja foto, é mais fácil), construções industriais abandonadas, muitos pinheiros e toda aquela vegetação da tundra (que se intensifica muito a partir de Ekaterimburgo) foram presenças certas no show que rolava fora do vagão.

Incrível ir acompanhando a paisagem. Lá perto do Baikal o clima começou a corresponder às expectativas e tudo ficou mais frio e cinza, então dá para falar que tivemos uma experiência completa na região.

Visões da Sibéria 2

Outra coisa digna de nota, eu falei pra caramba da terceira classe, mas para chegar até a Mongólia só existem trens que tem da segunda classe pra cima, por isso uma das nossas jornadas foi no estilo “mais patrão”. Que não é ruim, mas não é nem de perto tão interessante quanto o que vivenciamos.

Como tínhamos um tempo curto de Rússia, pois ainda precisávamos fazer um tour na Mongólia e depois entrar na China e já tínhamos passagem comprada (uma baita burrada) não conseguimos parar em muitas cidades pelo caminho. Aliás paramos mesmo em apenas duas.

Kazan foi a primeira. Nem tão longe assim de Moscou e ainda do lado ocidental da Rússia, é uma cidade interessante. Não diria notável, mas interessante. Existem influências asiáticas em geral, mas principalmente turcas e muçulmanas, afinal um dos marcos da cidade é uma mesquita (bonita demais, por sinal). Acho que dois dias por lá foram mais do que suficiente. Kazan ainda foi uma cidade de catarse, afinal a memória da copa do mundo ainda estava fresca e foi lá que o Brasil foi desclassificado. Minha intenção era arranjar briga com algum belga nas ruas, mas não encontrei nenhum. Lá também foi onde comi o pior algodão doce da minha vida. E, para não esquecer, foi onde tomamos vodka russa e fomos realmente destratados por um local (única vez), a senhora da estação de trem fingiu varias vezes que não existíamos, por isso aprendemos a comprar as passagens pela máquina de auto-serviço. Gostei de lá, mas provavelmente não voltaria.

A mesquita famosona
Pouca gente sabe, mas Ivan o Terrível era chegado numa bola

Outra cidade que visitamos pelo caminho foi a já mencionada Irkutsk, lá no coração da Sibéria e bem próxima do Baikal, o lago mais antigo do mundo. Eu esperava algo mais “largado”, sabe, estilo a Sibéria isolada que eu sempre ouvi falar, mas achei Irkutsk charmosa e até mesmo jovial. Cheia de casinhas de madeira que são um símbolo da região, mas também com prédios novos, restaurantes da moda e muitos jovens. Lá já da para ver em peso à população asiática que vive na Rússia, principalmente os mongóis, mas essa influência não necessariamente transborda para coisas como a arquitetura local. Enquanto estávamos lá ainda pegamos um ônibus e fomos visitar o lago, que infelizmente não é feito da incrível vodka barata Baikal, salvadora dos porres adolescentes e sem dinheiro.

Irkutsk

Foi um dos poucos dias frios e chuvosos de toda nossa estadia, e uma neblina espessa cobriu o lago. Não foi necessariamente bonito de ver, mas foi interessante. Toda vila em torno daquele mundo de água parecia um cover de Silent Hill e eu tinha certeza que enquanto visitávamos o lugar os moradores estavam em algum porão secreto cultuando alguma coisa antiga e odiosa adormecida nas profundezas. Pra melhorar tudo eu e Marina fizemos uma trilha que parecia rápida, mas demorou um bocado. Ela deveria nos levar a um viewpoint, mas passamos por portões e grades fechadas no vilarejo e demos em algo que eu acho que era uma estação metereológica, em que o cachorro do guarda quase nos matou de susto. Tive certeza que esse era o momento de nossa viagem que os aldeões iriam nos sequestrar e nos oferecer ao deus ancião do fundo do lago. Ainda bem que eles viram que eu não tinha muito valor e nos deixaram ir.

Baikal

Como vocês podem ver eu viajei (na minha cabeça) bastante durante esse passeio, então foi um bom dia. Mas o momento mais incrível dele foi quando, na volta, uma senhora pediu para parar o ônibus (deixando claro que não era uma parada do trajeto), desceu e começou a fazer xixi ali na beira da estrada, com todos os outros passageiros observando. Depois ela voltou como se nada tivesse acontecido e mandou tocar o busão. Paguei um pau para a senhora.

Depois dessa só nos restou partir, também de trem, para a Mongólia, assunto do próximo post.

E termina aqui um relato atabalhoado e um pouco desconexo sobre essa experiência incrível que tivemos bem no começo da viagem e que até agora não sei se assimilei direito. Nossa jornada trans-mongoliana foi assim mesmo, confusa e estranha. E valeu a pena demais.

Caso tenha a oportunidade de fazer algo parecido só vá com mais tempo do que uns 11 dias. Existem varias outras cidades bacanas pelo caminho e quem sabe, vai que você descobre alguma seita milenar russa que tenta controlar as criaturas misteriosas da Sibéria. Boa sorte.

Beijos Quentes

CLIQUE AQUI PARA SE INSCREVER NA NEWSLETTER E RECEBER RELATOS MAIS ATUALIZADOS DA VIAGEM