Nesse relato eu exagerei. Basta ver o quanto eu escrevi sobre apenas nossos 3 dias em Xian. Ok, o relato cobre pouco temporalmente, mas muitos fatos aconteceram nesse período, por isso o texto extenso. Enfim, o relato cobre os eventos de 07/09/2018 a 10/09/2018.
Olá seres pensantes que acompanham essa newsletter/blog. Surjo mais uma vez do meu covil no abismo para alegrar a semana de vocês. Espero.
Na verdade não estou nos meus melhores dias para escrever essa “enrolação” que faço antes de cada capítulo, então vai isso mesmo.
E segue o relato.
Partimos de Pequim para o nosso próximo destino, a incrível cidade murada de Xian. Antes de chegar lá tivemos a nossa primeira experiência da vida com trens bala. Vou ser sincero, não sei exatamente se era um trem bala, mas que era um trem bem rápido, a isso era. Foi uma experiência bem positiva, tudo fácil de achar, de embarcar e a viagem foi ótima. Cobrimos cerca de 1000 km em umas 5 horas, com o trem indo entre 250 a 300 km/h.
Olha, os “trens bala” da China estão de parabéns, deu vontade de usar eles pelo resto de toda viagem. Mas aí nós descobrimos que estávamos pagando caro pra caramba e foi esse o fim de nossa história. Adeus transporte de extrema velocidade e conforto.
E assim chegamos em Xian, que é uma baita cidade legal, diga-se de passagem. Carrega uma carga histórica pesadíssima, afinal tem mais de 3 mil anos e foi capital da China por muito tempo. Antiquíssima, ainda preserva parte de sua história até hoje, como os muros de pedra que correm por parte da cidade. Também é uma metrópole, com estrutura, força cultural e algumas peculiaridades. Desculpe, não vou me conter e vou cair no clichê: Xian é um belo exemplo de harmonia entre o passado e o presente. Gostamos bastante de lá, apesar do pouco tempo de estadia.
Uma dessas já mencionadas peculiaridades da cidade é seu bairro muçulmano e o mercado que existe por lá. Isso mesmo, Xian tem um bairro muçulmano que remete a tempos da Rota da Seda, quando a cidade era um dos extremos da famosa linha comercial. Comerciantes muçulmanos, já percebendo o potencial do mercado chinês, chegaram até Xian e ali ficaram, dando início a influência que até hoje perdura em partes da cidade. Achei esse fato muito incrível e inesperado (só descobri que o bairro existia quando cheguei lá), mas eu também sou o tipo de pessoa que fica duas horas observando um cachorro dormir, ou seja, posso achar qualquer coisa incrível.
E digo mais, esse mercado que visitamos era O mercado. A mistura perfeita entre comidas de rua, aromas estranhos, buzinas, gritos e pessoas. Um vórtex de caos, cheiros, sons e suor humano. Talvez eu esteja fazendo parecer como algo ruim, mas apesar de toda bagunça é um lugar incrível. Ele é sim muito cheio, tanto de gente quanto de motos. Ele é sim muito barulhento. Ele com certeza abriga uns cheiros pouco ortodoxos. Mas a comida é, no geral, boa, e a sensação de andar por um lugar tão vivo e pulsante é incrível. Sabe quando em um filme de aventura o personagem principal chega no bazar de alguma cidade distante e exótica? Em que tudo chama a atenção e é capaz de gerar maravilhamento? Então, nossa visita noturna ao bairro muçulmano foi mais ou menos assim.


Porém tenho que ser justo e dizer que foi lá também que tive uma das maiores decepções da viagem. Avistei de longe um doce que parecia ser muito popular, pois sempre tinha alguém comendo/comprando. Era um disco grosso e amarelado, que pela aparência me lembrou o meu amado quindim. Passei por diversas barraquinhas que serviam o famigerado alimento e sempre falava pra Marina “ei, será que é quindim?”. Certa hora, cansada das minhas indagações vazias, ela disse pra eu deixar de ser covarde e descobrir. Eu fui. Mas o problema é que eu fui com muita certeza que era quindim. Todos clientes saiam tão felizes e completos após a compra do doce que só poderia ser quindim, certo? Ou até mesmo algo melhor! Talvez toda essa troca de cultura gerada pela Rota da Seda tenha trazido o quindim pra China.
Bom, segui com minha jornada, comprei meu pedaço e como um homem prestes a conquistar o mundo dei uma baita mordida no meu pseudo quindim.
Meu deus, quanta decepção.
Senti o equivalente a uma apunhalada nas costas, uma traição gustativa sem precedentes. O doce era extremamente frio, com uma consistência estranha e sem gosto. Acho que eu preferiria um gosto muito ruim do que aquele vazio que estava na minha boca, um vazio que logo se transferiu para minha alma. O meu amado “quindim” era na verdade uma massa sem graça de arroz que se alguém vier me dizer que é bom vai arranjar um inimigo para vida.
Quiçá a maior tristeza da viagem até agora.

Xian também é a cidade dos guerreiros de terra cota, o exército construído para acompanhar e proteger a jornada espiritual do imperador Qin, o primeiro da China.
Foi muito interessante conhecer o complexo da tumba do imperador, acompanhar as escavações (existe trabalho arqueológico sendo feito até hoje por lá) e ver de perto os famosos guerreiros. São tantos (milhares) e com tantos detalhes. Existem os generais, os cavaleiros, os arqueiros e os coitados, aqueles em que dá para perceber a falta de esmero dos artesãos. Acho que esse último grupo foi feito quando o prazo já estava chegando ao fim e aí foi melhor entregar uns mais mal acabados do que não entregar nada. Não julgo os artesãos, afinal já estive na faculdade e sei como é essa situação.

Foi um passeio incrível e recomendo muito para quem gosta de história. Ler sobre as escavações, sobre como tudo foi descoberto sem querer por agricultores e entender o baita processo de “remontagem” que os arqueólogos fazem foi bem interessante, afinal a descoberta desses guerreiros é o mais importante fato arqueológico dos últimos 50 anos.

E pensar que eu perdi a excursão da escola quando os guerreiros foram expostos em São Paulo (acho que fiquei jogando vídeo game ou algo do tipo), então chupa vida. Agora tive a oportunidade de vê-los no seu próprio cantinho especial.
E no nosso último dia em Xian resolvemos ir para um local um pouco afastado da cidade para percorrer as trilhas do Monte Huashan, uma das cinco montanhas sagradas da China. Deveria ser uma das montanhas malditas da China, isso sim, pois esse morro glamourizado quase acabou com a minha vida e meu casamento (posso estar exagerando um pouco aqui).
Antes de continuarmos um aviso: lembra que eu disse que já na China, mesmo cansados estávamos em um ritmo acelerado ao visitar coisas e lugares, levando nossos corpos e mentes ao limite? Então, essa informação é importante pois foi exatamente no topo da montanha que transbordamos esse limite e a coisa ficou feia.
O monte Huashan tem diversos picos, cinco para ser exato, e a maioria das trilhas ficam já no “topo” da montanha. Ele também já foi conhecido como um dos locais mais perigosos de se fazer trekking no mundo, mas hoje isso mudou e caminhos pavimentados e escadas se espalham em quase todas direções. Ainda existe uma parte da trilha que você faz pela lateral da montanha, andando apenas em umas tábuas de madeira e é aterrorizante (clique no link para entender).

Nós ficamos na fila para percorrer esse caminho, mas (felizmente) estava muito cheio e não daria tempo de descer a montanha se esperássemos mais tempo. Mas só para resumir, Huashan já foi um lugar muito perigoso, hoje ainda é um pouco, pois alguns dos caminhos são bem íngremes, e é um local com escadas que te desafiam fisicamente. É um local com escadas que desfiam a lógica e a física. É um local com muitas escadas. É tanto degrau que dá vontade de se jogar lá de cima.

Estou só criando um contexto para falar que: conhecer todos os picos sem ajuda de algum facilitador, como teleférico ou bondinho, é bem desgastante.
Nosso plano inicial era fazer a montanha toda sem ajuda desses “facilitadores”, afinal somos aventureiros. E essas engenhocas são caras de usar. Na verdade o real motivo foi o valor mesmo, eu queria economizar uma grana. Para que pagar alguns dólares se você pode subir mais de 4 mil degraus sozinho? Bobagem. Mas como encontramos outro grupo de gringos na fila do ticket de entrada (talvez os únicos que vimos por lá) e eles disseram que andaríamos muito no topo da montanha e que seria melhor subir com alguma ajuda, mudamos de ideia. Eu fui meio cético, mas a Marina se convenceu, essa santa em forma de mulher, ainda bem por isso, pois senão nós não estaríamos mais nesse planeta.
Subir até o “quase cume” foi uma jornada magnífica. O caminho do teleférico é bem bonito e até aí o dia estava indo bem. Chegar lá em cima foi incrível também. O lugar é lindo e é fácil entender porque é considerada uma montanha sagrada. Nós chegamos em praticamente três dos cinco cumes possíveis, e a vista era sempre espetacular. Além da vista, toda a aura da montanha é algo de outro planeta, principalmente nas rotas e picos menos cheios. Ali a gente andava, andava, andava. Subíamos e descíamos escadas e do nada nos deparávamos com algum monastério mais antigo que aquele vinho que a sua avó guarda para “ocasiões especiais”. Como o monastério foi parar ali não sei.



Bom, como eu disse, em alguns momentos a trilha assumia uma aura quase espiritual, um ar de mistério e encantamento se aliavam a uma paisagem tomada por rochas de aspecto violento e um horizonte infinito. Já em outros momentos tinham mais de cem pessoas atoladas no pequeno espaço de uma das trilhas, enfiando braços e cotovelos nos nossos olhos e nosso único desejo era jogar alguém dali de cima. Coisas de China.
E falando em jogar outras pessoas da montanha…
Eu já mencionei que nosso cansaço estava chegando no limite e que as trilhas do Huashan eram desgastantes, uma combinação explosiva. Ambos atingimos um patamar de irritação nunca visto antes (e nem depois) nos anais de nossa viagem. Foi uma lavagem de roupa suja de duração extrema, quase o ”Iron Man” das DRs, tanto pela duração quanto pelo desgaste físico que estávamos tendo ao falar e andar. Quando tudo parecia resolvido um mero espirro causava uma nova discussão. Senti no olhar a vontade furiosa da Marina de me empurrar de lá de cima algumas vezes. Certa hora ela até me ofereceu para uma família chinesa, que educadamente me recusou como um novo membro. Foi esbravejo pra lá e esbravejo pra cá, até que enfim, quase com as luzes crepusculares indo embora, nosso real entendimento apareceu. E aí tudo estava bem de novo. Ou quase.
Lembra que eu disse que eram mais de 4 mil degraus para subir? Bom, nosso plano era descer tudo a pé, pois pelo o que lembro nem dinheiro para o teleférico tínhamos. Isso depois de perambular o dia inteiro por trilhas recheadas de escadas e caminhos íngremes. Nossa cota de degraus havia sido atingida faz tempo, mas mesmo assim não tinha o que fazer, precisaríamos enfrentar mais uns milhares deles para chegar à base. Então lá fomos nós.

Pegamos um caminho praticamente sem ninguém e as poucas pessoas que cruzavam com a gente estava subindo a trilha, o que me fez questionar até onde a rota nos levaria, mais um ponto de estresse para minha mente “noiada”. Também era um caminho com escadas em ângulo de quase 90 graus. Era mais fácil pular e se esborrachar no chão do que descer algumas delas.
Outro ponto importante, já era fim do dia e ainda tínhamos que andar alguns bons quilômetros, alguns deles na vertical, para chegar a tempo de pegar o último ônibus para Xian, que partia às 19 horas. Ou seja, era uma corrida contra o tempo.

Após muitos tropeções, surtos de desespero (meus) e as nossas pernas quase desistirem de funcionar, conseguimos! Chegamos ao fim da trilha acabados, destruídos, verdadeiros farrapos humanos se arrastando. Mas claro que o martírio ainda não tinha acabado, afinal era necessário achar da onde o ônibus partiria, pois saímos por um portão diferente do que entramos. Após algumas perguntas desesperadas para pedestres que nos olhavam com estranheza, um guarda resolveu nos ajudar e apontou o caminho. Foi aí que o avistamos, de longe, ele, a nossa salvação em forma de aço, borracha e combustível fóssil. O medo que o ônibus partisse tomou conta de nossos corações e, ao olharmos um para o outro sabíamos, seria necessário correr. Disparamos pela ruazinha da cidade e na minha cabeça estava tocando o tema de “Carruagens de Fogo” ao fundo, uma cena bonita em que desafiamos nossos limites e chegamos até o destino. A realidade deve ter sido bem menos glamurosa e talvez mais visceral, algo mais ou menos como dois porquinhos da índia pernetas correndo pela rua. Praticamente dois zumbis brasileiros aterrorizando uma pequena cidadezinha chinesa.
Não sei como cheguei, mas cheguei. Acabado, mas cheguei. E assim conseguimos voltar pra Xian.
Ainda bem que tudo deu certo, pois tínhamos que pegar um trem no dia seguinte cedo para Xangai, onde enfrentamos as consequências dos nossos atos no monte Huashan. Basicamente ficamos sem andar por alguns dias e eu passei bem mal.
Mas para saber mais sobre isso só lendo o próximo relato.
No fim a bela montanha da discórdia foi muito importante para um ajuste no nosso “relacionamento de viagem”. Ali, após muito suor e brigas, acertamos verdadeiramente nosso compasso como casal e nada do mesmo tipo se repetiu. Obrigado, montanha maldita.

E uma última informação para os curiosos, nesse dia nós andamos mais de 30 km e subimos e descemos mais de 6 mil degraus. É isso.
Beijos quentes