
Olá amantes do obscuro e dançarinos da escuridão, nos encontramos mais uma vez nesse teatro das sombras para celebrar a tristeza que é viver. Estou aqui de novo com uma boia para salvar vossas almas desse oceano de marasmo, das ondas da mediocridade e do abismo da rotina. Oras, acho que é melhor ler isso do que o último e-mail do seu cliente em que ele diz, de forma muito amável, que seu trabalho precisa ser praticamente refeito em poucos horas.
A Capadócia foi uma região especial para nós, um lugar que injetou energia na nossa viagem quando tudo já parecia ser mais do mesmo. Aumentou a vontade de sair e descobrir, algo que acaba-se perdendo com o tempo nesse tipo de jornada. Na verdade não se perde, mas gasta-se, e aí é necessário algum tempo para recuperar essa energia. Quem lançar aos ventos que não se cansa de viajar (por muito tempo) e não precisa encontrar algum buraco escuro para hibernar é mentiroso ou um alienígena, ou os dois.
Enfim, ainda estávamos por Göreme, de alma esfrangalhada curtindo a paisagem pitoresca e uns bons chás, quando nos tocamos que era necessário entrar em movimento de novo. A Turquia nos esperava. Um dos países mais antigos do mundo ansiava por ser descoberto por nós e por mais uns 500 milhões de turistas. Mas como estávamos em modo de economia energética resolvemos alugar um carro, um pequeno luxo frente aos perrengues do transporte público, que diverte e cansa na mesma medida.
Para isso fomos até Kayseri, uma cidade a 1 hora de Göreme, onde enfrentamos uma Quimera burocrática para conseguir nosso carro. Não vou detalhar nada, pois seria aqui mais um relato dos chatos obstáculos de papel e caneta que aparecem no percurso, mas vou dizer que o que deveria demorar umas 2 horas acabou demorando quase 5, gerou uma discussão acalorada entre eu, um atendente de telefone que falava pouco inglês e dois turcos do balcão da locadora que não falavam inglês nenhum. Foi a torre de babel do aluguel de carros.
Queriam nos cobrar algo que achei injusto e no fim concordamos em devolver o carro de volta em Kayseri e não em Istambul, o que dificultaria o fim da nossa viagem turca, mas falo mais sobre isso nos próximos relatos.
Depois de quase sair na mão pela primeira vez na viagem, finalmente embarcamos no nosso possante Peugeot-301. Não é brincadeira não, o carro andava quase no negativo. Foi o primeiro caso de veículo brocha que presenciei. Limpo, arrumadinho, mas fraco. Bom, faz parte, é isso que a busca pela locação mais barata normalmente entrega. O importante é que começamos a cruzar o país em um sedan de tiozão na velocidade da minha falecida tia Gertrude ao volante. E foi incrível.
A ideia era sair da Anatólia central, bem no meio do país, e seguir para a região do mar, mais precisamente o sudoeste da Turquia. Mas como estávamos longe fizemos algumas paradas interessantes pelo caminho.

A primeira foi em Konya, uma das cidades mais antigas do mundo, habitada desde cerca de 3.000 AC. Konya é também lar do braço do Islã chamado sufismo, do poeta Rumi e dos dervixes rodopiantes – aqueles rapazes que dançam rodando feito loucos com suas roupas largas e no fim conseguem andar normalmente como se nada tivesse acontecido (eles seriam campeões das finadas olimpíadas do Faustão). Eu não vou comentar sobre cada um desses pontos que acabei de mencionar (faça como eu e dê um Google para aprender mais), mas deu para perceber que Konya é um lugar com uma história incrível. E também um dos locais mais tradicionais da Turquia. A cidade até que é moderna (em termos de estrutura), charmosa e tem bastante jovens pelas ruas, mas lá quase não vimos mulheres sem hijab e eu era provavelmente a única pessoa (fora crianças) usando shorts. Também quase não vimos outros turistas. Mas como somos de fora não sentimos nenhum olhar de repreensão, porém pelo o que li e ouvi por aí as mulheres de lugares mais cosmopolitas, como Istambul e Izmir, não gostam tanto de se enfiar nessa Turquia mais interiorana.
Ficamos apenas duas noites na cidade, mas foi suficiente e deu para conhecer sua avenida principal que já conta com um número notável de mesquitas incríveis. Tem a colina do Alaaddin (não tem nada a ver com o desenho da Disney, infelizmente) em que fica a mesquita mais antiga da cidade, o centro histórico Mevlana e a mesquita Selimiye, um dos únicos lugares onde senti uma sensação diferente ao entrar, um tipo único de paz transcendental que durou até eu tropeçar em um degrauzinho e quase cair em cima de um jovem que estava orando. Os momentos de iluminação são raros na minha vida.
Mas os momentos mais legais em Konya foram pequenas porções do nosso dia, como quando tomamos chá da tarde em um café cheio de senhores carrancudos, mas que se mostraram felizes com nossa presença (espero) e quando fui cortar o cabelo em um típico barbeiro turco. O lugar ficava em frente ao nosso hotel e eu estava precisando de uma aparada urgente nas madeixas. O meu cabelo já estava com consciência própria e não mais respeitava minhas tentativas patéticas de penteá-lo com as mãos (não tenho e nunca tive pente), rebelde que é tenho quase certeza que ele também já estava planejando algum ato para desestabilizar a ordem mundial e dominar o planeta. Meu cabelo tem mais ambições que eu.
Resolvi então dar um fim no maldito e entrei nesse lugar simpático onde ninguém falava inglês, como era de costume em Konya. O barbeiro logo entendeu o que eu queria, a Marina mostrou uma foto no celular de como eu esperava o resultado, o barbeiro riu porque deve ter achado que eu jamais ficaria tão bonito quanto o modelo da tela, eu fiquei constrangido e assim, nesse ritmo gostoso, começou o processo do corte. Durante os primeiros minutos as etapas foram as esperadas na ação de modelagem capilar. Mas depois de terminada a parte com tesouras e navalhas algo estranho começou a acontecer. Primeiro o rapaz e seu ajudante praticamente colocaram fogo nas minhas orelhas para queimar pelos e o que estivesse no caminho, depois ele pegou um creme esverdeado e espalhou pelo meu rosto, tal qual uma perua em um day spa qualquer – só faltou colocar pepinos nos meus olhos. Depois eles limparam a famigerada gosma verde e colocaram toalhas em mim junto com um vaporizador maluco e usaram mais um creme esfoliante – foram camadas e mais camadas de reboco nessa reforma inacabada que é minha cara. No fim tive o prazer de ter uma dose de pomada modeladora aplicada nos fios e ganhei uma massagem que beirou um erotismo que eu não estava preparado para experienciar. Não foi apenas um corte de cabelo, foi uma tempestade de sensações conflitantes em que várias vezes eu quis ir embora mas ao mesmo tempo nunca tinha sido tão bem tratado. Barbeiros turcos são mais carinhosos e acolhedores que colo de mãe.

No fim ganhei um belo “dia de princeso” e ainda paguei 4 dólares pelo trâmite todo. Olha, se barbeiros atenciosos estão entre as tradições de Konya eu sou totalmente a favor do conservadorismo, afinal no Brasil por esse valor eu ganharia apenas um corte “tigelinha” e um pedaço a menos da minha orelha.
Quem diria que o momento mais espiritual em uma cidade sagrada seria junto a um turco parrudo com uma navalha perto do meu pescoço.
De visual novo e alma lavada passamos por uma antiga e charmosa vila grega que fica bem perto da cidade e onde comemos, como sempre, mais do que devíamos. O lugar era pitoresco, quase parado no tempo, com aquele charme que só “vilazinhas” conseguem ter. Valeu a enchida no bucho.
Apesar das reclamações quanto ao possante que o universo nos entregou, Konya é um lugar que provavelmente não estaria nos nossos planos caso viajássemos de outra forma, por isso a liberdade automotiva nos rendeu frutos interessantes. Faltou só dar mais cavalos de pau pelas estradas.

Depois da minha peregrinação visual deixamos Konya e fomos em direção a antigas cidades gregas/bizantinas, visitamos ruínas que existem a mais tempo que aquele chocolate na cristaleira da sua avó e quase derretemos sob um sol impiedoso.
Até a próxima.
Beijos Quentes