
Olá, amigos e amigas da meia-noite. Enquanto estamos a espera da escuridão eterna que vai apagar a realidade como conhecemos, que tal curtir mais um capítulo deste humilde blog?
O capítulo anterior terminou quando estávamos prestes a sair de Rishikesh e da Índia e a caminho das praias paradisíacas das Maldivas.
Mas claro que o país de Shiva não nos deixaria sair dele sem uma última “provação”. Essa foi leve até: nosso ônibus de Rishikesh para Delhi atrasou algumas horas porque estava quebrado no acostamento da estrada. Tivemos que pegar um ônibus alternativo até a tal estrada e aí pegar o ônibus alternativo 2 até Delhi. O problema é que o ônibus alternativo 2 já estava bem cheio, então tiveram que acomodar os novos passageiros em um lugar em que novos passageiros não poderiam ser acomodados. Tudo bem, faz parte passar por esses momentos de extremo contato humano e até que após entrar no veículo com nossas mochilas colossais e esbarrar em vários indianos (sem querer), conseguimos uma “cabine” privada. Os ônibus leitos da Índia tem uma espécie de cabine com duas camas para os passageiros irem deitados e tranquilos, é bem bom, mas como o ônibus alternativo 2 já estava lotado tivemos que colocar nossas malas no compartimento junto com a gente e ficou tudo bem apertado. Aliás esse estilo de ônibus é maravilhoso para quem viaja em dupla, mas ficar com um estranho nessa cabininha do amor deve ser bem incômodo (ou bem gostoso, depende da sua disposição para se divertir).
Antes de continuar com o relato quero fazer um parêntese. Eu odeio minha mochila. Eu sei que uma mochila é tudo para um mochileiro e é quase um sacrilégio isso que estou dizendo, mas nós não temos uma boa relação. Claro, reconheço o quanto ela já me foi útil, quantos momentos gostosos dividimos e quantas barras já passamos juntos, mas a coisa toda ficou insustentável. E não é que a mochila é ruim, longe disso, na verdade o problema sou eu. Eu que imaginei que precisava de tantas coisas antes de começar a viagem e que peguei uma mala grande demais. Eu que não calculei que ficaria parecendo uma tartaruga ninja com ela nas costas. Ela é tão grande que parece que eu estou carregando um corpo pra lá e pra cá. E o tamanho irrita. Não só pela necessidade de despachar a mala quando pegamos avião, mas principalmente porque avião é o meio de transporte que menos usamos, nós “preferimos” vans apertadas, ônibus velhos, trens lotados e por aí vai. E juro, é horrível entrar nesses lugares com praticamente um baú nas costas. Eu me irrito e irrito os outros. Quero agradecer de coração minha cunhada que me emprestou a mochila, mas nosso relacionamento não foi dos melhores.
Terminada a sessão reclamação voltamos pro relato do ônibus apertado.
E foi numa colisão de corpos, bagagem e suor que fomos pra Delhi e finalmente chegamos ao aeroporto. Já era tarde da noite e passamos mais uma madrugada entre os rostos tristes que habitam o local nas horas mais escuras. Mas tudo bem, estávamos acostumados. E olhe só, o voo até saiu no horário. Nesse momento achamos que nosso azar com transportes estava terminando.
Ledo engano, ledo engano.
Chegamos em Malé, capital das Maldivas, no período da tarde do dia seguinte. A ideia era passar uma noite lá e pegar uma balsa pública logo cedo. Isso porque as Maldivas são formadas por mais de 1000 ilhas e claro que os deuses, brincando com a gente, nos fizeram achar um hotel acessível em uma ilha bem longe da capital. Para chegar em qualquer outro lugar saindo de Malé existem algumas opções de transporte, como a balsa pública, a balsa noturna, speed boat e aviões pequenos. As duas últimas opções são as mais rápidas e mais usadas por turistas endinheirados. Elas funcionam quase todos os dias e chegar até uma ilha resort não vira uma epopeia. Não era nosso caso, usar uma lancha ou um avião acabaria com nosso budget, por isso optamos pela balsa pública que era 10 vezes mais barata. O problema é que essa balsa não serve todas ilhas todos dias, por isso calculamos nossa partida de Malé para segunda-feira de manhã, quando o rapaz do nosso hotel garantiu que sairia um transporte para Maamigili (nosso destino final). Conhecendo nossa sorte para esse tipo de coisa você já deve imaginar que o plano não deu certo. Não tinha balsa pública para Maamigili na segunda, só na quarta-feira, o que significaria que ficaríamos mais duas noites em Malé, onde a hospedagem é cara pra caramba. Já estava me preparando para dar tchau para um rim.

Foi aí que lembramos da balsa noturna, bem mais cara que nossa primeira opção, mas ainda acessível. Andamos a esmo no porto comercial a procura do tal barco e, apesar do cenário não ser convidativo, foi então que descobrimos a hospitalidade e desejo de ajudar dos maldivos. Que povo simpático. Estávamos um pouco com pé atrás em relação a proatividade alheia devido algumas experiências não tão bacanas na Ásia, mas lá a ajuda foi sempre sincera. Foi nossa primeira vez em um país de maioria muçulmana e isso me fez pensar na hospitalidade do Islã, coisa que já tinha ouvido falar. Enfim, achamos a tal balsa noturna e partimos às 23 horas para chegar apenas 6 da manhã em nosso destino. Ou seja, saímos de Rishikesh sábado cedo para chegar terça-feira aonde realmente queríamos estar. Entendeu porque às vezes cansa essa história de ir de um lugar pro outro? E olha que essa jornada foi bem tranquila perto do que já passamos ou de histórias que escutamos.
Mas agora que mais uma saga dos transportes foi explicada (eu sei, sou repetitivo) chegou a parte interessante, a parte de falar desse “fundo de tela” da vida real que são as Maldivas, mais um lugar surreal que visitamos.
Para explicar rapidamente, afinal não dei contexto nenhum, nosso hotel não era um resort ou algo do tipo, mas conseguimos um bom preço com refeições inclusas em uma hospedagem bacana em uma ilha local (Maamigili), ou seja, com uma vila funcional e não apenas tomada por um resort monstruoso. Mas, como descrito acima, não foi tão fácil assim chegar lá.
Começamos por Malé, que é uma cidade ajeitada e não tem nada de muito especial, mas fica em uma ilha (óbvio) e mesmo de lá, mesmo do caos urbano, já dá pra perceber que o mar na região é especial, transparente e convidativo. Aliás Male é daqueles lugares em que muitos pontos o que separa a terra do mar é uma simples muretinha. Cada vez que alguém fala em “aquecimento global” a população das Maldivas deve tremer.

Depois fomos para Maamigili, a ilha em que ficamos hospedados. Ela fica há umas boas horas de barco da capital, em um atol distante. A praia de turistas (a em que estrangeiros podem nadar com roupas de banho e é limpa) tinha aquela cor de água de filme, um mar azul turquesa que parecia nos chamar para se banhar nele. Da areia conseguíamos ver o horizonte infinito com pequenas ilhas (e resorts) pipocando ao fundo. Tudo isso sob as sombras de coqueiros. Olha, não estava ruim não, mas por Maamigili ser uma ilha habitada por locais (e não só uma ilha resort) ela nos mostrou uma realidade diferente das Maldivas – mais disso a seguir. Além desses dois lugares fizemos passeios pelo atol onde fica Maamigili – para um resort e uma ilha deserta. E aí, meus amigos, aí foi só cenário de filme mesmo. Aquele mar que é ao mesmo tempo transparente e de um azul tão intenso que parece uma piscina translúcida de Gatorade, bancos de areia e coqueiros perdidos em uma imensidão aquática e uma vida marinha ativa que salpica essa tela azul de muitas cores diferentes. Eu sei que posso soar repetitivo, mas é impossível ficar fora da água nesses lugares. É tão bonito que não dá para não entrar. O oceano é uma sereia que atrai pelos olhos e não pelos ouvidos, sempre nos puxando para as profundezas. Para ser mais chucro: é foda.

Agora falando sobre o resort – fizemos um passeio de um dia para um desses mega empreendimentos que tomam uma ilhota inteira e criam um paraíso hedonista para os afortunados. E sim, o lugar que visitamos era incrível e imagino que todos resorts devam ser. É a união de um cenário perfeito com luxo e conforto. Mas também é estranho frequentar algo assim vivendo tanto tempo os perrengues da estrada. Pessoas te levando pra lá e pra cá de carrinho de golfe, pessoas servindo comida e drinks, pessoas tomando conta dos seus filhos, pessoas secando suas costas com a língua (ok, eu exagerei e na verdade nem sei como esse exemplo funcionaria, afinal a língua só deixaria tudo mais molhado não é?). Eu não estou dizendo que esse tipo de coisa é ruim, nem que é boa, não vou mergulhar no abismo filosófico e discutir a moral e ética do tema. Só é tudo muito estranho, principalmente para quem veio, como a gente, da vivência de realidades com diferenças abismais para essa. E é tudo muito caro também, nossa única atividade por lá foi morrer nas belas praias da ilhota e, para não deixar passar em branco, consumir um drink no bar da piscina (que quase nos custou um órgão). Foi um belo dia. Para economizar até levamos marmita do nosso hotel all inclusive.

O outro passeio que fizemos foi para um ilhazinha bem perto de Maamigili chamada Picnic Island. Um lugar deserto, mas que provavelmente serve ou já serviu como fazenda de coqueiros. Enquanto explorava a ilha me deparei com diversas estruturas abandonadas. Me senti em Lost descobrindo as ruínas de complexos científicos ou algo do gênero. Não vou mentir – foi a volta daquele sentimento bobo de aventura ao se deparar levemente com o desconhecido ou o misterioso. Nessas andanças encontrei pedras que formavam diversas piscinas naturais e em um delas pude acompanhar uma moreia caçando caranguejos e foi um espetáculo incrível. Ela nadava ameaçadoramente, sempre a espreita, e quando percebia que um dos caranguejos tinha dado bobeira saía feito um míssil com metade do corpo para fora da água expondo seus dentes brancos e mordendo tudo que viesse pela frente. Foi uma cena feroz. Vida e morte no mundo selvagem. Parece que estou dramatizando demais um evento corriqueiro que demorou o total de uns 20 segundos, mas pensa só por um minuto, na escala dos caranguejos era a luta deles contra um infernal dragão aquático, praticamente a versão crustacea de Cadmo contra a serpente. No fim a moreia conseguiu arrastar um infeliz caranguejo para baixo de sua pedra favorita e a vida sobre as rochas voltou ao normal.

A Picnic Island era incrível, como a maioria dos lugares nas Maldivas. Tínhamos acabado de vir de um cenário quase alienígena, as ferozes montanhas dos Himalaias e eu estava apaixonado por aquele visual, mas ali perto da água lembrei que para mim nada supera um mar azul, areia branca e uns coqueiros vistosos. O problema do lugar é que lá tinha muito lixo. Sim, lixo, uma tribulação recorrente nas Maldivas.
Já comentei que ficamos em Maamigili e que lá é uma ilha cidade, ou seja, é habitada por pessoas locais. Disse também que lá descobrimos um outro lado chocante da realidade do país, como diz a Marina “um tapa na cara”. Lá descobrimos como o lixo é tão parte do paraíso quanto o mar azul.
A cidade/vila de Maamigili não é suja, é inclusive bem organizada. Não testemunhamos nenhum ato que indique tamanho descaso ambiental para explicar o que vimos (já passamos por lugares que a população tinham pouca ou nenhuma consciência ambiental), mas fato é que ao nos aventurarmos para longe da praia dos turistas descobrimos um verdadeiro lixão a céu aberto nas areias da ilha. Esse lixo está lá por uma série de fatores: vem do mar que é cada vez mais um lugar de despejo das grandes nações (e isso é muito forte no sudeste asiático), falta de espaço e de soluções para o lixo produzido nas ilhas das Maldivas e também um pouco de falta de consciência das pessoas (turistas e locais). Fato é que vimos isso em Maamigili, vimos isso na Picnic Island e pelo o que pesquisamos acontece em várias outras ilhas que não sejam visitadas por celebridades.

Fato é que em uma tarde nublada nós resolvemos tentar melhorar minimamente a situação e ficamos umas boas horas catando tranqueiras da praia. Sabemos que foi um esforço mínimo perto do que precisa ser feito, mas pareceu melhor do que apenas deitar com a barriga ao sol. Um fato curioso: após enchermos nosso primeiro latão de lixo um senhor que cuidava da praia de turistas veio nos ajudar e, com sua carriola, insistiu em levar o latão para um lugar apropriado. Nós o seguimos e vimos que o tal do lugar apropriado era um lixão improvisado em meio à vegetação bem pertinho do mar. Não serviu de muita coisa nosso suor inicial. Acho que esse foi mais um fato triste do que um fato curioso, mas a vida é assim, mais triste do que interessante.

Além de pegar lixo das praias e torrar em cenários extravagantes também curtimos muito nosso quarto. Não, não é isso que você está pensando leitor de mente mais tórrida, é que no pouco tempo que ficamos lá choveu bastante. Mas foi bom, conseguimos relaxar e colocar séries, livros e filmes em dia. Uma hora até nos enchemos o saco e nadamos na chuva mesmo.
Outra coisa interessante que aconteceu foi que estávamos no país bem na época do Ramadã, quiçá a celebração religiosa mais importante do islã. Como o Ramadã exige uma série de sacrifícios e tem regras bem específicas, ele muda completamente a rotina de um país muçulmano, algo interessante de vivenciar em primeira mão. De dia não pode, entre outras coisas, comer ou beber água, então a noite é um período de encontros, confraternização e comida. Parecia uma rave de muitos dias, pois sempre quando íamos dormir escutávamos a vida acontecendo lá fora.
No fim nossa estadia cumpriu seu papel e ainda nos acordou (finalmente) para mais uma realidade dura desse planeta. Mas havia chegado hora de sair desse paraíso maculado e seguir viagem.

Foram mais algumas boas horas de balsa pública até Malé, onde pegamos um avião com destino para Délhi, mas que sabíamos que não seria nosso ponto final. Isso mesmo, não iríamos ficar na Índia, mas poucas horas antes de nosso voo não tínhamos ideia para onde prosseguir. Aliás o processo todo de decisão foi bem caótico e muito estressante, mas isso eu conto na próximo post.
Beijos Quentes